quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Psicoterapeutas do LABIRINTO

Para agendar entrevista de triagem, o interessado deve ligar (85) 8678-2073.

ALINE ELERES DE AQUINO MEYBOM DA ROCHA - CRP 11/2756
Psicóloga clínica de orientação junguiana
Especialista em Avaliação Psicológica pelo CETREDE/UFC
Consultório: Av. Santos Dumont, 1740 - Sala 1104 - Aldeota
Tel: (85) 3081-8719
E-mail: alineleres@hotmail.com

ANA KARINE SOUTO DOS SANTOS CAVALHEIRO - CRP 11/3158
Psicóloga clínica de orientação junguiana
Formação em Arte-Terapia pelo Instituto Aquilae (Fortaleza/CE)
Especialista em Psicopatologia Clínica (UNIP - Universidade Paulista)
Coordenadora de Grupos de Estudos em Psicologia Analítica em Fortaleza/CE
Supervisora Clínica
Membro Coordenadora do Departamento de Práticas Clínicas do LABIRINTO
Consultório: Rua João Carvalho, 800, Sl 1108 - Aldeota
Tel: (85) 9904-7156 / (85) 8808-9983
E-mail: aksouto@yahoo.com.br

ANDRÉ DANTAS DO AMARAL - CRP 11/3099
Psicólogo clínico de orientação junguiana
Psicólogo do CRAS de Ararendá/CE
Autor do Livro "Psicologia Dialética: Uma Crítica Interna à Psicologia Junguiana" (disponível em http://www.clubedeautores.com.br/book/3630--Psicologia_Dialetica)
Consultório: Av. Santos Dumont, 3131 (Shopping Del Paseo), Sl 1109 - Aldeota
Tel: (85) 8836-9002
E-mail: andre.mercurio@hotmail.com

ELIZETH DIAS PARENTE - CRP 11/0766
Psicóloga clínica
Psicóloga do HAP VIDA - Sistema de Saúde
Especialista em Psicopedagogia (Faculdade Gama Filho)
Especialista em Neuropsicologia (Faculdade Christus)
Consultório: Av. Senador Virgílio Távora, 1901, Sala 303 - Aldeota
Tel: (85) 8775-4000 / (85) 9600-3363
E-mail: eli_parente@hotmail.com

ÉRICA BANDEIRA MACHADO - CRP 11/5642
Psicóloga clínica
Formação em Avaliação Psicológica - Neuropsicocentro
Especializanda em Neuropsicologia - Faculdade Christus
Consultório: Rua João Carvalho, 800, Sl 705 - Aldeota
Tel: (85) 9699-8006 / (85) 8864-5051 / (85) 3081-8189
E-mail: erica.clinicapsi@gmail.com

EVALDO FERREIRA DA COSTA - CRP 11/1846
Psicólogo clínico de orientação junguiana
Especialista em Gerontologia pelo CETREDE/UFC
Coordenador de Grupos de Estudos em Psicologia Analítica em Fortaleza/CE
Supervisor clínico
Membro Coordenador do Departamento Científico e de Formação do LABIRINTO
Consultório: Rua João Carvalho, 800, Sl 1108 - Aldeota
Tel: (85) 8812-1924
E-mail: jaguardacosta@hotmail.com

KATIANA MOURA ROCHA - CRP 11/1360
Psicóloga da Prefeitura de Eusébio (CE)
Psicóloga clínica de orientação junguiana
Consultório 1: Espaço da Vitalidade - CE 040, Eusébio (CE) - Tel: (85) 3260-4727
Consultório 2: Av. Dom Luís, 500 - Sala 930 - Meireles (Torre Shopping Aldeota)
E-mail: moura.katiana@gmail.com

MIRELLE FREITAS LIMA - CRP 11/3575
Psicóloga graduada pela UFC
Especialista em Psicomotricidade Clínica e Educacional pela UECE - Universidade Estadual do Ceará
Formação em Arte-Terapia pelo Instituto Aquilae
Formação em Terapia Comunitária
Consultório: Rua Visconde de Mauá, 2600 - Dionísio Torres - Tel: (85) 3224-5022
E-mail: mirellefreitas@hotmail.com

NADJA CECÍLIA BESERRA DE SENA - CRP 11/4579
Psicóloga clínica
Psicóloga do CAPS AD de Maracanaú/CE
Especializanda em Psicopatologia Clínica (UNIP - Universidade Paulista)
Especializanda em Psicoterapia Psicanalítica (Faculdade Farias Brito)
Consultório: Av. Dom Luiz, 500 - Sala 930 - Meireles (Torre Shopping Aldeota)
Tel: (85) 8894-1512 / 9963-5508
E-mail: cecisena@ig.com.br

NARA THAÍS GUIMARÃES OLIVEIRA - CRP 11/5730
Psicóloga clínica de orientação junguiana
Psicóloga escolar do colégio Canarinho Sapiens
Leciona a disciplina "Formação Humana" no colégio Canarinho Sapiens
Especialista em Teoria e Prática Jungiana (Universidade Veiga de Almeida-RJ)
Consultório: Rua Dr. José Lourenço, 2235 - Dionísio Torres - Instituto Aquilae
Tel: (85) 3227-6868 / 8771-4141
E-mail: narathais.psi@gmail.com

VERLAINE MARTINS VERAS FILHO - CRP 11/2161
Psicólogo clínico e social
Coordenador do CRAS do Conj. Palmeiras - Fortaleza/CE
Membro-colaborador do Núcleo Cearense de Estudos e Pesquisa sobre a Criança e o Adolescente - NUCEPEC/UFC
Consultório: Rua Silva Paulet, 1325 - Aldeota - Tel: (85) 3224-3966
E-mail: mrveras@gmail.com

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

I Curso de Formação em Psicoterapia Junguiana - Inscrições Abertas!

I Curso de Formação em Psicoterapia Junguiana - INSCRIÇÕES ABERTAS!
Estão abertas as inscrições para o I Curso de Formação em Psicoterapia Junguiana do LABIRINTO!

O início do curso de formação está previsto para maio/2012.

Segue, abaixo, Edital com informações detalhadas acerca do processo de seleção de alunos.

No caso de dúvidas ou informações adicionais, estamos à disposição.


Cordialmente,
Diretoria LABIRINTO
85 8678-2073
labirinto_laboratorio@yahoo.com.br
www.labirintopsi.blogspot.com.br

...

LABORATÓRIO DE INDIVIDUAÇÃO E REINTEGRAÇÃO DA TOTALIDADE – LABIRINTO

EDITAL Nº 01/2012

I CURSO DE FORMAÇÃO EM PSICOTERAPIA JUNGUIANA

SELEÇÃO DE ALUNOS

A Presidente do Laboratório de Individuação e Reintegração da Totalidade – LABIRINTO, no uso de suas atribuições legais e estatutárias, torna público, pelo presente Edital, as normas do processo de seleção de alunos para o I Curso de Formação em Psicoterapia Junguiana.

1. DAS DISPOSIÇÕES PRELIMINARES:
A presente seleção de alunos será regida por este Edital e será executada pelo Departamento Científico e de Formação do Laboratório de Individuação e Reintegração da Totalidade – LABIRINTO.

2. DAS VAGAS:
Serão ofertadas 40 vagas.

3. DO CURSO
3.1. O início do curso está previsto para maio de 2012.
3.2. O Curso terá duração de trinta meses, possuindo carga horária total de 840 horas, composta de:
a) 144 horas de módulos teóricos, divididas em 12 encontros;
b) 72 horas de seminários clínicos, divididas em 18 encontros;
c) 360 horas de estágio prático;
d) 72 horas de supervisão clínica individual;
e) 72 horas de supervisão clínica em grupo;
f) 120 horas de análise pessoal.

4. DOS REQUISITOS BÁSICOS:
4.1. O candidato à vaga no curso deve ser psicólogo ou médico psiquiatra devidamente inscrito em seu respectivo conselho profissional;
4.2. Estudantes de Psicologia cursando o último ano da graduação e/ou em estágio clínico poderão participar dos módulos teóricos da formação, ficando sua participação nos módulos práticos condicionada à conclusão do curso de Psicologia.

5. DA INSCRIÇÃO:
5.1. Período: de 09/01/2012 a 04/04/2012 (PRORROGADO PARA 30/04/2012);
5.2. Será cobrada taxa de inscrição no valor de R$ 50,00 (cinquenta reais).
5.3. Documentos necessários:
a) Formulário de inscrição para a seleção devidamente preenchido (obtido na sede do LABIRINTO – vide endereço no item 5.4. – ou por e-mail, mediante solicitação do candidato);
b) Curriculum Vitae devidamente comprovado;
c) Fotocópia do Diploma de Graduação ou Declaração de Colação de Grau;
d) Fotocópia do histórico escolar (para estudantes);
e) Fotocópia da Carteira Profissional (CRP ou CRM);
f) Fotocópia do RG ou documento equivalente (para estrangeiros), CPF e comprovante de residência;
g) Carta de intenção, com no máximo duas laudas, justificando interesse em participar da formação;
h) Comprovante do pagamento da taxa de inscrição para a seleção;
i) Foto 3x4 (uma).
5.4. O candidato deverá entregar os documentos listados no item 5.2. na sede do Laboratório de Individuação e Reintegração da Totalidade - LABIRINTO, sito à Rua João Carvalho, nº 800, sala 1108, Aldeota – Telefone: 85 8678-2073;
5.5. Ao efetuar a inscrição, o candidato declara conhecer e aceitar as condições e normas constantes neste edital.

6. DA SELEÇÃO:
6.1. Período: de 01/03/2012 a 30/04/2012;
6.2. A Seleção será realizada em duas fases: a) análise dos documentos listados no item 5.2. e, b) entrevista com o candidato. O processo seletivo será conduzido por uma comissão formada por membro da Diretoria e pelo coordenador do Departamento Científico e de Formação do LABIRINTO.

7. DA DIVULGAÇÃO DOS RESULTADOS:
O LABIRINTO informará resultado ao candidato selecionado através de endereço eletrônico fornecido pelo mesmo no ato da inscrição ou contato telefônico, bem como divulgará a lista de todos os candidatos selecionados até 30/04/2012 nas dependências de sua sede.

8. DA MATRÍCULA
8.1. Período: de 16/04/2012 a 10/05/2012;
8.2. Local: Sede do LABIRINTO (vide endereço no item 5.4.)

9. DO INVESTIMENTO
9.1. A taxa de matrícula corresponderá à primeira mensalidade e deverá ser paga no período descrito no item 8.1., com vistas à garantia da vaga no curso;
9.2. Mensalidades: Matrícula + 29 parcelas de:
a) R$ 300,00 (trezentos reais) para membro-fundador do LABIRINTO e estudante de graduação e;
b) R$ 330,00 (trezentos e trinta reais) para profissional;
9.3. Os custos com análise pessoal não estão incluídos no valor da matrícula e da mensalidade e não serão definidos pelo LABIRINTO, ficando sob responsabilidade do aluno a comprovação da carga horária exigida.

10. DISPOSIÇÕES FINAIS
10.1. A constatação de quaisquer irregularidades na documentação apresentada pelo candidato implicará na sua desclassificação, a qualquer tempo, sem prejuízo das medidas legais cabíveis, não havendo devolução do valor da taxa de inscrição;
10.2. Os casos omissos serão analisados pela comissão responsável pela condução do processo seletivo, especificada no item 6.2;
10.3. Nenhum candidato poderá alegar desconhecimento das instruções contidas no presente Edital;
10.4. O LABIRINTO reserva-se o direito de cancelar ou adiar o início do curso por motivo de força maior, dando ampla divulgação de seus atos e de eventuais providências a serem tomadas pelos candidatos que já tenham efetivado sua inscrição.

Fortaleza (CE), 02 de janeiro de 2012.

Ana Karine Souto dos Santos Cavalheiro
Presidente do Labirinto

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

FUNÇÃO TRANSCENDENTE NA OBRA DE JUNG

Obs: Os números que se vêem ao longo do texto correspondem às notas.

FUNÇÃO TRANSCENDENTE NA OBRA DE JUNG1

ANDRÉ DANTAS

A Psicologia Junguiana iniciou-se em 1912, quando Jung encontrava-se em pleno epicentro de uma rachadura na comunidade psicanalítica. De um lado estava Freud, criador da disciplina e defensor da teoria sexual como pedra fundamental na construção de um tratamento das neuroses. Do outro estava Adler, um dos primeiros discípulos de Freud, defensor do complexo de poder como fator determinante na etiologia das neuroses. No meio dos dois estava Jung, o príncipe herdeiro do império freudiano, que durante os anos da crise estava escrevendo o trabalho que seria a última pedra do muro que o separaria de Freud. Jung sentia essa rachadura nas profundezas do seu ser, pois se sentia em dívida com a teoria de Freud apesar de discordar quanto à centralidade da sexualidade. Em suas memórias Jung lembra que no começo de sua trajetória psicanalítica Freud era uma persona non grata no meio acadêmico, mas mesmo diante das reservas que ele próprio mantinha em relação à teoria sexual, assumiu a causa freudiana defendendo-a dos diversos ataques que sofria na época. Com a convivência Jung percebeu a enorme importância pessoal e filosófica que a teoria sexual tinha para Freud. Para Jung era principalmente sua atitude em relação ao espírito que lhe parecia equivocada.

Tenho ainda uma viva lembrança de Freud me dizendo: “Meu caro Jung, prometa-me nunca abandonar a teoria sexual. É o que importa, essencialmente! Olhe, devemos fazer dela um dogma, isto é, um baluarte inabalável.” Ele me dizia isso cheio de ardor,como um pai que diz ao filho: “Prometa-me uma coisa, meu caro filho: vá todos os domingos à igreja”. Um tanto espantado, perguntei-lhe: “Um baluarte contra o quê?” Ele respondeu-me: “Contra a lama negra do ocultismo!” O que me alarmou em primeiro lugar foi o “baluarte” e o “dogma”: um dogma, isto é, uma profissão de fé indiscutível surge apenas quando se pretende esmagar uma dúvida, de uma vez por todas. Não se trata mais de um julgamento científico, mas revela somente uma vontade de poder pessoal2.

Apesar de naquele momento não ter se pronunciado contra tal posição, Jung não podia concordar com ela. O que Freud entendia por ocultismo era aproximadamente tudo o que a filosofia, a religião e a nascente parapsicologia do início do século diziam da alma. Mas para Jung a teoria sexual era tão oculta, isto é, tão hipotética quanto outras tantas concepções especulativas. O que Jung ainda não havia compreendido de todo era o quanto a sexualidade era numinosa para Freud. Quando falava sobre ela era “num tom insistente, quase ansioso, e desaparecia sua atitude habitual, crítica e céptica. Uma estranha impressão de inquietude, cuja causa eu ignorava, marcava o seu rosto”3. Como mais tarde veio a entender, Jung estava no meio de uma irrupção de fatores religiosos inconscientes em Freud, que queria recrutá-lo para uma defesa contra essa ameaça. Até então Jung jamais considerara a sexualidade algo de flutuantemente precário a que se devia fidelidade devido ao medo de perdê-la. Jung sentia que havia lançado um olhar furtivo em direção a um país ainda desconhecido, de onde afluíam uma nuvem de idéias novas.

Parecia-me claro que Freud, proclamando sempre e insistentemente sua irreligiosidade, construíra um dogma, ou melhor, substituíra o Deus ciumento que perdera, por outra imagem que se impusera a ele: a da sexualidade. Ela não era menos premente, imperiosa, exigente, ameaçadora e moralmente ambivalente. Psiquicamente falando, aquilo que é mais forte e, portanto, mais temível, toma os atributos de “divino” e de “demoníaco”; da mesma forma, a “libido” sexual” se revestira e desempenhara nele o papel de um deus oculto. A vantagem desta transformação consistia, para Freud, ao que parece, que o novo princípio “numinoso” se lhe afigurava cientificamente irrecusável e livre de qualquer hipótese religiosa. Mas, no fundo, a numinosidade – enquanto classificação psicológica desses contrários, racionalmente incomensuráveis, que são Javé e a sexualidade – permanecia a mesma. Só mudara o nome, e por conseguinte o ponto de vista4.

Uma característica em especial da personalidade freudiana que preocupava Jung era a sua amargura, com o tempo foi percebendo o quanto ela se devia a sua relação com a sexualidade. Apesar da numinosidade que se apoderava dele, sua teoria não conseguia expressá-la adequadamente, pois a terminologia característica dos seus escritos não conseguia veicular a intensidade que brilhava quando ele falava do assunto.

Certamente, para Freud, a sexualidade era numinosa, mas em sua terminologia, em sua teoria a considerava exclusivamente como função biológica. A animação que falava desse tema permitia concluir que tendências ainda mais profundas ressoavam nele. Em suma: ele queria ensinar – pelo menos é o que me pareceu – que, considerada subjetivamente, a sexualidade engloba também a espiritualidade, ou possui uma significação intrínseca. Mas sua terminologia, demasiado concreta, era muito restrita para poder formular esta idéia. Minha impressão era que, no fundo, ele trabalhava contra sua própria meta e contra si mesmo. Pois bem:haverá maior amargura do que a de um homem que é seu mais encarniçado inimigo? Citando palavras suas: ele se sentia ameaçado por “uma onda de lodo negro”, ele, aquele que antes de qualquer outro tentara penetrar e tirar a limpo as profundidades negras. (..) Era cego em relação ao paradoxo e à ambigüidade dos conteúdos do inconsciente e não sabia que tudo o que dele surge tem um alto e um baixo, um interior e um exterior. Quando se fala apenas do aspecto exterior – é o que Freud fazia – só se toma em consideração uma das metades e como conseqüência inevitável nasce uma reação no inconsciente5.

Devido à unilateralidade do seu pensamento, Freud tornou-se vítima do único lado que podia identificar e isso era o trágico em sua figura, pois ele era um homem que possuía o fogo sagrado, mas só conseguia vê-lo pela metade. Por isso Freud não podia aceitar interpretações divergentes como a de Adler, visto que ela apresentava aspectos ocultos do seu próprio pensamento.

Depois, houve o problema da confrontação do problema do amor – ou Eros – e do poder, que caiu sobre mim como uma opressiva capa de chumbo. Mais tarde, Freud disse-me que nunca lera Nietzsche. De resto eu considerava a psicologia de Freud uma manobra da história do espírito que vinha compensar a divinização do princípio de poder realizada por Nietzsche. O problema realmente não era “Freud versus Adler”, mas “Freud versus Nietzsche”. Esse problema me parece bem mais importante do que uma contenda doméstica no domínio da psicopatologia. Surgiu-me a idéia de que Eros e o instinto de poder eram que como irmãos inimigos, filhos de um só pai, filhos de uma força psíquica que os motivava e – como a carga elétrica positiva e negativa – se manifestava na experiência sob a forma de oposição: o Eros como patiens, como uma força que se sofre passivamente e o instinto de poder como um agens, como força ativa, e vice-versa. O Eros recorre tantas vezes ao instinto de poder como o instinto de poder ao Eros. O que seria um desses instintos sem o outro6?

Toda vez que um acontecimento numinoso vibra intensamente, o ser humano pode cair num “sim” absoluto ou num “não” absoluto. O perigo do numinoso é o seu extremismo que eleva e rebaixa simultaneamente, pois de um ponto de vista é verdadeiro enquanto de outro é falso.

Minha conversa com Freud mostrara-me o quanto ele temia que a clareza numinosa de sua teoria fosse extinta por uma onda de lodo negro. Assim, criava uma situação mitológica: a luta entre luz e trevas. Esta situação explica a numinosidade da questão e o recurso imediato a um meio de defesa, tirado do arsenal religioso: o dogma. (...) A interpretação sexual por um lado, e a vontade de poder manifestada pelo dogma, por outro, me orientaram no correr dos anos para o problema tipológico, assim como para a polaridade e a energética da alma. Depois, comecei a investigação que se estendeu através de várias décadas, acerca da onda de lodo negro do ocultismo; esforcei-me por compreender as condições históricas, conscientes e inconscientes, da psicologia moderna7.

O problema da polaridade foi a bússola que guiou o mergulho de Jung nas profundezas da alma. Por isso ele nunca abandonou Freud totalmente já que sua fidelidade era à visão que impulsionava Freud e não à letra freudiana. Como Freud, Jung estava em busca do inconsciente recalcado, mas para isso ele teve de ir contra o dogma sexual, relativizando sua importância como um dos muitos conteúdos possíveis de serem recalcados.

Olhando para trás, posso dizer que sou o único que prosseguiu o estudo dos dois problemas que mais interessavam Freud: o dos “resíduos arcaicos” e o da sexualidade. Espalhou-se o erro de que não vejo o valor da sexualidade. Muito pelo contrário, ela desempenha um grande papel em minha psicologia, principalmente como expressão fundamental – mas não a única - da totalidade psíquica. Minha preocupação essencial era, no entanto, aprofunfar a sexualidade além do seu significado pessoal e seu alcance da função biológica, explicando-lhe o lado espiritual e o sentido numinoso. Exprimia, assim, o que fascinara Freud, sem que este o compreendesse. Os livros Psicologia da Transferência e Mysterium Coniunctionis expõem minhas idéias sobre o tema. Como expressão de um espírito ctônico, a sexualidade é da maior importância. Esse espírito é “a outra face de Deus”, o lado sombrio da imagem de Deus. Os problemas do espírito ctônico me preocuparam desde que tomei contato com o mundo das idéias da alquimia8.

Se a fidelidade de Jung foi ao fogo sagrado que ardia no coração freudiano e não à letra fixada em seus escritos, do mesmo modo aqueles que pretendem seguir o caminho por ele aberto precisam aprender a captar nas entrelinhas dos seus escritos o espírito que o impulsionava. A atitude de Jung em relação a Freud convida os seus discípulos a não caírem na cisão unilateral entre ortodoxia e iconoclastia, mas a suportarem a tensão entre as duas, traindo a letra em fidelidade à alma do trabalho. Mas qual a alma do trabalho junguiano? Como vimos, o que levou Jung a traçar uma linha de fuga do caminho freudiano foi a unilateralidade da concepção de inconsciente, incapaz de captar suas contradições. O que na aparência é visto como rompimento, para Jung tratou-se de um aprofundamento no lado oculto das idéias de Freud. Até o fim da sua vida Jung foi de certa forma um freudiano, visto que ele mergulhou como poucos na sombra da teoria sexual, a lama negra do ocultismo, o aspecto místico-religioso da alma que a psicanálise excluía por contradizer suas afirmações centrais. Isso implicava retornar às afirmações que haviam reprimido a sexualidade durantes séculos, e Jung estava ciente do perigo de que isso restaurasse unilateralmente as antigas posições veementemente combatidas por Freud. Era necessário suportar a tensão entre as contradições sem afirmar a superioridade de uma sobre a outra, pois foram os excessos unilaterais da espiritualidade que fermentaram o retorno patológico da sexualidade negada, que borbulhava nos sintomas neuróticos da virada do século. Sem a igreja não haveria psicanálise porque o que ela trouxe à tona foi tudo aquilo que a primeira havia ontologicamente excluído da alma. Mas Freud assumiu o partido contrário com tanta veemência que perdeu a conexão entre a sua posição e a do seu inimigo, combatendo-a sem perceber que a reproduzia em suas próprias atitudes.
Olhando em retrospecto Jung percebeu que o centro em torno do qual circula toda a sua obra é a problemática dos opostos, a qual ele dedicou os últimos esforços que fecharam o ciclo do seu pensamento.

O Mysterium Coniunctionis constitui a conclusão do confronto da alquimia com a minha psicologia do inconsciente. Nessa obra retomei mais uma vez o problema da transferência, e segui minha primeira intenção que era descrever a alquimia em toda a sua amplitude, como uma espécie de psicologia da alquimia, ou como um fundamento alquimista das profundezas. Só com o Mysterium Coniunctionis minha psicologia foi definitivamente colocada na realidade e estabelecida em seu conjunto graças aos seus fundamentos históricos. Assim, minha tarefa foi cumprida e minha obra terminada. No momento em que atingi o fundo sólido, toquei ao mesmo tempo o limite extremo daquilo que era, para mim, cientificamente atingível: o transcendente, a essência do arquétipo em si-mesmo, a propósito do qual não se poderia formular mais nada de científico9.

Para darmos prosseguimento à obra de Jung precisamos começar onde ele parou, no transcendente, na essência do arquétipo em si-mesmo à propósito do qual não se pode formular mais nada de científico. Mas como se trata das misteriosas conjunções alquímicas onde os opostos são separados e sintetizados, o movimento para frente e para trás são duas faces de um só e mesmo caminho. Levar a obra junguiana adiante requer o retorno ao momento da sua gênese como uma práxis independente de Freud. Se o que motivou o rompimento foi a fidelidade ao paradoxo da alma em torno do qual são tecidas suas reflexões, então não há uma separação entre seus primeiros trabalhos e os últimos dedicados à alquimia como pensam alguns junguianos. Todo ele é dedicado ao espírito mercurial cuja bifacialidade só pode ser descrita quando a razão científica e a imaginação mitopoética trabalham em conjunto. Jung percebeu na alquimia um ancestral histórico da sua psicologia, porque ela também expressava uma especial dedicação ao problema da oposição que desde o início absorveu toda a sua atenção.
Em 1958 foi publicada uma versão revisada de um ensaio escrito por Jung originalmente em 1916. Ele permaneceu oculto até ser descoberto por estudantes do Instituto C.G Jung de Zurique em 1957. Este ensaio explicita a conexão nem sempre aparente entre os primeiros e os últimos escritos de Jung. Ele reapareceu no fim da sua vida para expressar ouroboricamente o fim que já estava latente desde o início, o espírito mercurial das oposições cujo fogo serviu de combustível para sua opus.
Na época em que A função transcendente foi escrita, o coração de Jung vibrava sob o efeito do terremoto causado pela rachadura com Freud. Os anos que seguiram ao rompimento foram difíceis para Jung. Assolado pela incerteza e desorientação submeteu-se a um diálogo com o inconsciente e a todas as conseqüências que tal diálogo poderia trazer, inclusive a de um colapso psicótico.
O ensaio é uma tentativa de descrever o diálogo com o inconsciente. Sem esse diálogo não seria possível para Jung penetrar nas profundezas do desconhecido e retornar de lá com as preciosas descobertas sobre a atividade psíquica que preencheram as milhares de páginas que compõe a sua obra. Nessa época ele não havia formulado conceitos como arquétipo, si-mesmo, anima, animus, sombra, tipologia, aos quais dedicaria grande espaço em escritos posteriores. O que emergiu em 1916 foi o conceito de função transcendente, a prática do diálogo entre consciência e inconsciente através do qual a psique transforma a si mesma10.
Nos 42 anos que separam as duas versões, o problema de como chegar a um acordo com o inconsciente ainda era uma questão crucial para Jung. O ensaio sobre a função transcendente é o resultado prático-teórico da separação com Freud, do confronto com o inconsciente, e a primeira expressão do embate com o problema dos opostos que perpassará toda a sua obra até seus últimos escritos alquímicos. A importância maior desse período está no reconhecimento por parte de Jung da natureza teleológica do inconsciente, que além de ser o lugar do reprimido, também possui uma intenção, um propósito. Por este motivo, o caminho para o saber psicológico requer parceria entre a consciência e o inconsciente. Jung nomeou essa parceria de função transcendente.

Por “função transcendente” não se deve entender algo de misterioso e por assim dizer supra-sensível ou metafísico, mas uma função que, por sua natureza, pode-se comparar com uma função matemática de igual denominação, e é uma função de números reais e imaginários. A função psicológica e “transcendente” resulta da união dos conteúdos conscientes e inconscientes. A experiência no campo da psicologia analítica nos tem mostrado abundantemente que o consciente e o inconsciente raramente estão de acordo no que se refere a seus conteúdos e tendências. Esta falta de paralelismo, como nos ensina a experiência, não é meramente acidental ou sem propósito, mas se deve ao fato de que o inconsciente se comporta de maneira compensatória ou complementar em relação à consciência. Podemos inverter a formulação e dizer que a consciência se comporta de maneira compensatória com relação ao inconsciente11.

A idéia de oposição está no coração do pensamento de Jung, sendo quase um sinônimo de vida psíquica, visto que para ele os opostos são as inerradicáveis e indispensáveis precondições de toda a vida psíquica12. Jung atribui ao filósofo grego Heráclito a paternidade da idéia de oposição complementar.

O velho Heráclito, que era realmente um grande sábio, descobriu a mais fantástica de todas as leis da psicologia: a função reguladora dos contrários. Deu-lhe o nome de enantiodromia (correr em direção contrária), advertindo que um dia tudo reverte em seu contrário13.

Para Jung a oposição não era apenas a pré-condição indispensável para a vida psíquica, era também psicóide, uma lei da natureza a qual ele conecta à primeira lei da termodinâmica para qual toda energia é função de uma oposição.

Com o conceito de energia está formulado o conceito de contraste, visto que uma afluência energética requer necessariamente a existência de uma afluência oposta, quer dizer, dois estados distintos, sem o que uma afluência não pode ter, com efeito, uma efetivação concreta. Todo fenômeno energético (na realidade, todos os fenômenos o são) põe em destaque dois pólos opostos: princípio e fim, alto e baixo, quente e frio, antes e depois, origem e término, etc., ou seja, os pares antagônicos. A inseparabilidade do conceito de contraste também é inerente ao conceito de libido. Os símbolos da libido, de natureza mítica ou especulativa, estão representados, portanto, ou diretamente pelos contrastes ou decompõe-se, de maneira bastante imediata, em contrastes14.

A unidade dos opostos realizada pela função transcendente era de essencial importância na apreensão da realidade profunda que unia os aspectos individuais e coletivos da psique. A oposição não reside apenas na relação entre consciente e inconsciente, mas também entre introversão-extroversão, pensamento-sentimento, intuição-sensação, inconsciente pessoal-inconsciente coletivo, anima-animus, logos-eros, arquétipo em-si-imagem arquetípica, ego-si-mesmo, persona-animus/anima, sombra-ego, signo-símbolo, primeira metade da vida-segunda metade, causalidade-sincronicidade, método redutivo-método prospectivo, apenas para citar algumas.
Como a oposição não ocorre somente entre consciente e inconsciente, a função transcendente está presente em toda teoria junguiana, permeando a relação entre todos os principais conceitos, visto que ela é a manifestação do diálogo com o outro interno, essencial a qualquer mudança real de atitude. O grande legado de Freud foi que não somos mestres em nossa própria casa, por isso qualquer transformação requer um confronto com o desconhecido em nós mesmos. Uma mudança psicológica não depende apenas de um esforço subjetivista, controlado pelo ego, mas do reconhecimento de que o ego é apenas uma parte da totalidade psíquica.
A transformação psíquica operada pela função transcendente, atua através do símbolo, imagem que personifica a totalidade da situação psíquica. Ele é uma resposta inconsciente para uma problemática consciente. Para que ele atue é preciso que o ego não se identifique com nenhum dos pares de opostos, pois se tomar posição a favor de um, o outro é reprimido ou projetado. Se o ego reconhecer a total igualdade de direito de ambas as partes, produz-se uma paralisação da vontade, e o fluxo de libido regride ativando o inconsciente, fonte de todos os conteúdos diferenciados da consciência.

A atividade do inconsciente faz emergir um conteúdo em que se patenteia, em idêntica medida, o influxo da tese e da antítese, e que, em relação a ambas, conduz-se com efeitos compensatórios. Desde o começo em que esse conteúdo mostra suas relações tanto com a tese como com a antítese, constitui uma base intermediária em que os contrastes se podem conjugar. (...) Em seu conjunto, dou ao processo que acabo de descrever o nome de função transcendente. Mas, neste caso, não entendo como “função” uma função fundamental, mas o fato de que, em virtude dessa função, opera-se um trânsito entre uma e outra disposição. A matéria-prima trabalhada pela tese e antítese que em seu processo de conformação realiza a conjugação dos contrários é o símbolo vivo15.

Jung afirma que não há nada de misterioso ou metafísico na função transcendente. Contudo, em diversas passagens de sua obra um aroma metafísico parece brotar. Apesar de Jung negar, a aura divina irradiada na síntese dos opostos é visível a quem quer que a olhe.

(...) qualquer contraste pertence a Deus e por isso o homem deve tomá-lo sobre si; tão logo o faça, Deus se apossará dele, juntamente com a suas antinomias. O homem é, então, invadido pelo conflito divino. Não é sem fundamento que ligamos a idéia de sofrimento ao estado no qual os contrários se chocam dolorosamente, e temos receio de considerar uma experiência desta natureza como libertação. Entretanto, não podemos negar que o grande símbolo da fé cristã, a cruz, da qual pende a figura sofredora do Redentor, vem sendo exposto de forma impressionante aos olhos do cristão há quase dois mil anos. Este quadro é completado pela presença dos dois malfeitores, um dos quais desce ao inferno e o outro sobe ao paraíso. Não se pode representar melhor a antinomia do símbolo central do cristianismo do que desta forma16.

No ensaio sobre a função transcendente Jung afirma ser mais proveitoso trabalhar com a imaginação ativa do que com os sonhos, pois as imagens oníricas não constelam tensão suficiente para ativar a função transcendente. No entanto, em um outro escrito Jung afirma que os sonhos e visões também servem de matéria prima para a função transcendente.

Lidar com o inconsciente é um processo (ou, conforme o caso, um sofrimento ou um trabalho) cujo nome é função transcendente, porque representa uma função que, fundada em dados reais e imaginários ou racionais e irracionais, lança uma ponte sobre a brecha existente entre o consciente e o inconsciente. É um processo natural, uma manifestação de energia produzida pela tensão entre os contrários, formado por uma sucessão de processos de fantasia que surgem espontaneamente em sonhos e visões17.

Apesar de Jung não ter relacionado explicitamente o arquétipo da sombra com a função transcendente, a conexão implícita entre ambas é notória. Personificação dos elementos escuros e reprimidos que não estão em acordo com as normas sociais vigentes, a sombra é o primeiro degrau na descida ao inconsciente. Nenhum diálogo com o outro interno é completo sem o confronto com os aspectos sombrios não aceitos em nós e por isso reprimidos e/ou projetados. A sombra, uma manifestação arquetípica, é a personificação do outro instintivo, primitivo, amoral, interno a nós mesmos, e uma dentre as múltiplas formas possíveis de manifestação do inconsciente. Portanto, é um elemento essencial a ser integrado via função transcendente. Como os aspectos sombrios da psique jamais são integrados por completo a função transcendente atua de forma ininterrupta18.
Anima e animus também funcionam como personificação da função transcendente. Ambos compensam a estrutura de conformidade coletiva externa chamada por Jung de persona. Caso ocorra uma intensa identificação do ego com a persona, ele torna-se apenas um papel social coletivo, cindindo da vida interior.

O indivíduo tende a identificar-se com a máscara impelido pelo mundo, mas também por influências que atuam de dentro. “O alto ergue-se do profundo”, diz Lao-Tzé. É do íntimo que se impõe o lado contrário, tal como se o inconsciente oprimisse o eu com o mesmo poder que a persona exerce sobre ele. À falta de resistência exterior contra a sedução da persona, corresponde uma fraqueza interior relativa às influências do inconsciente. O papel desempenhado fora é atuante e forte, ao passo que dentro vai-se desenvolvendo uma fraqueza efeminada contra todas as influências do inconsciente: estados de espírito momentâneos, caprichos, angústias e uma sexualidade efeminada (que culmina na impotência) passam, pouco a pouco, para o primeiro plano. A persona, imagem ideal do homem tal como ele quer ser, é compensada interiormente pela fraqueza feminina; e assim como o indivíduo exteriormente faz o papel de homem forte, por dentro torna-se mulher, torna-se anima, e é esta que se opõe à persona. O íntimo é obscuro e invisível para a consciência extrovertida, principalmente para o indivíduo que tem dificuldade em reconhecer suas fraquezas, por haver-se identificado com a persona. Portanto, o contrário da persona – a anima – também permanece totalmente no escuro e se projeta. (...) É importante para a meta de individuação, isto é, da realização do si-mesmo, que o indivíduo aprenda a distinguir entre o que parece ser para si mesmo e o que é para os outros. É igualmente necessário que conscientize seu invisível sistema de relações com inconsciente, ou seja, com a anima, a fim de poder diferenciar-se dela19.

Assim, anima e animus personificam o outro interno reprimido e por isso nos parecem tão misteriosos e ameaçadores. São símbolos da própria existência do inconsciente, e como tal intermediam as relações com a consciência, do mesmo modo como a persona intermedia as relações com o mundo social. “O animus não pertence à função de relação consciente; sua função é a de possibilitar a relação com o inconsciente”20. No papel de mediadores são essenciais no processo de integrar elementos cindidos da psique. A ligação entre os arquétipos da sizígia e a função transcendente é clara.

Por um lado, o inconsciente é um processo puramente natural, sem objetivo; mas por outro lado tem o endereçamento potencial, típico de todo processo energético. Quando a consciência desempenha uma parte ativa e experimenta cada estádio do processo, compreendendo-o pelo menos intuitivamente, então a imagem seguinte sempre ascenderá a um estágio superior, constituindo-se assim finalidade da meta. A meta seguinte da confrontação com o inconsciente é alcançar um estado em que os conteúdos inconscientes não permaneçam como tais e não continuem a exprimir-se indiretamente como fenômenos da anima e do animus, mas se tornem uma função de relação com o inconsciente21.

Para Jung anima e animus devem ser levados a sério como manifestações da atividade psíquica. Na medida em que dialogamos com estas personificações elas revelam seus conteúdos e intenções que, ao serem clarificados, dissolvem-se em uma função de relação com o inconsciente. A dissolução das imagens personificadas da anima e do animus impedem que eles funcionem em completa autonomia , apossando-se do ego.

Essas duas figuras crepusculares do fundo obscuro da psique, a anima e o animus (verdadeiros e semigrotescos “guardadores do umbral”, para usar o pomposo vocabulário teosófico), podem assumir numerosos aspectos, que encheriam volumes inteiros. Suas complicações e transformações são ricas como o próprio mundo, e tão extensas como a variedade incalculável do seu correlato consciente, a persona. Habitam uma esfera de penumbra, e dificilmente percebemos que ambos, anima e animus, são complexos autônomos que constituem uma função psicológica do homem e da mulher. Sua autonomia e falta de desenvolvimento ursupa, ou melhor, retém o pleno desabrochar de uma personalidade. Entretanto, já podemos antever a possibilidade de destruir sua personificação, pois conscientizando-os podemos convertê-los em pontes que nos conduzem ao inconsciente. Se não os utilizarmos intencionalmente como funções, continuarão a ser complexos personificados e nesse estado terão que ser reconhecidos como personalidades relativamente independentes22.

O trabalho contínuo com a anima e o a animus é uma operação da função transcendente, uma das múltiplas formas através das quais ela atua.
O problema dos opostos também está presente em todos os estudos alquímicos que marcaram a última fase da obra de Jung. Vistos por Jung como ancestrais dos psicólogos, os alquimistas estavam envolvidos com Mercúrio, o espírito divino aprisionado na matéria, cujas características foram resumidas por Jung em um estudo apresentado em 1942.

1) Mercúrius consiste em todos os opostos possíveis e imagináveis. Ele é uma dualidade manifesta, sempre porém designada como unidade, se bem que suas oposições internas possam apartar-se dramaticamente em figuras diversas e aparentemente autônomas.
2) Ele é físico e espiritual.
3) Ele é o processo de transformação do plano físico, inferior, no plano superior e espiritual, e vice-versa.
4) Ele é o diabo, o salvador que indica o caminho, um “trickster” evasivo, a divindade tal como se configura na natureza materna.
5) Ele é a imagem especular de uma vivência mística do artifex, a qual coincide com a opus alchymicum (obra alquímica).
6) Enquanto vivência acima referida, ele representa, por um lado, o si-mesmo e, por outro, o processo de individuação e também o inconsciente coletivo, devido ao caráter ilimitado de suas determinações23.

Os itens 2,3,4,5,6 são desdobramentos do item 1, do Mercúrius como personificação de todos os opostos possíveis e imagináveis, o que significa que os conceitos de inconsciente coletivo, individuação e si-mesmo se fundamentam na complementaridade dos opostos.
A função transcendente é de suma importância no diálogo entre o ego e as imagens arquetípicas do inconsciente coletivo, reunindo-as como partes de um todo maior que as integram e as transcendem. A função transcendente e os arquétipos seriam diferentes expressões de uma só e mesma coisa, o diálogo entre o consciente e o inconsciente.

Enquanto o inconsciente coletivo, indiferenciado, ficar acoplado à psique individual, nenhum progresso se fará ... Mas quando concebemos as figuras do inconsciente como fenômenos ou funções da psique coletiva, não entramos em contradição com a consciência intelectual. É uma solução racionalmente aceitável. Com isso adquirimos também a possibilidade de lidar com os resíduos ativados da nossa história antropológica, o que permitirá que se transponha a linha divisória anteriormente existente. Por isso chamei-lhe função transcendente, porque equivale a uma evolução progressiva para uma nova atitude24.

A diferença é que a função transcendente é a expressão desse diálogo em forma processual, enquanto os arquétipos seriam as expressões personificadas desse diálogo. Logo em qualquer contato com uma imagem arquetípica existe o potencial para a ação da função transcendente, e onde quer que a função transcendente atue, a consciência está de alguma forma interagindo com material arquetípico25.
Quando Jung escreveu o ensaio sobre a função transcendente pela primeira vez ele não havia elaborado totalmente a teoria dos arquétipos. Nesta época o que estava em primeiro plano era que tanto o consciente como o inconsciente precisavam reconhecer o papel ativo que cada um desempenhava na atividade psíquica. O conceito de arquétipo surgiu bem mais tarde, funcionando como uma objetificação da parte inconsciente do diálogo com a consciência. As imagens arquetípicas seriam assim, uma das múltiplas personificações da operação da função transcendente26.
Para diferenciar-se da abordagem freudiana, que buscava explicações para psicopatologia em causas no passado, em traumas infantis, Jung buscou integrar a visão freudiana numa abordagem mais ampla, onde o passado presentificado tem um propósito mais amplo além da pura descarga de impulsos reprimidos. Jung nomeou esse aspecto teleológico da vida psíquica de processo de individuação e a abordagem que lida com ele de prospectiva. Na época em que escreveu o primeiro ensaio sobre a função transcendente ele ainda não tinha desenvolvido uma visão abrangente desse processo. Em escritos posteriores a relação entre a função transcendente, as mudanças trazidas por ela e o processo de individuação estão bem mais delineadas.

É claro que esta modificação da personalidade não corresponde a uma alteração da predisposição hereditária do indivíduo, mas representa uma transformação da atitude geral. As separações drásticas e oposições entre o consciente e o inconsciente, tão evidentes nas naturezas neuróticas e carregadas de conflitos, dependem quase sempre de uma unilateralidade acentuada da atitude consciente, que prefere de modo absoluto uma das duas funções, relegando as outras indevidamente para o segundo plano. A conscientização e vivência das fantasias determinam a assimilação das funções inferiores e inconscientes à consciência, causando efeitos profundos sobre a atitude consciente. Não discutirei agora em seus pormenores a forma desta mudança da personalidade. Quero sublinhar apenas o fato de que se trata de uma mudança essencial. Dei o nome de função transcendente a esta mudança obtida através do confronto com o inconsciente. A singular capacidade de transformação da alma humana, que se exprime na função transcendente, é o objeto principal da filosofia alquimista da baixa Idade Média. Essa filosofia representa tal capacidade anímica pela conhecida simbologia alquimista. (...) Houve uma filosofia “alquímica” precursora vacilante da moderna psicologia. Seu segredo é a “função transcendente” e a transformação da personalidade através da mistura e fusão de elementos nobres e vulgares, das funções diferenciadas e inferiores do consciente e do inconsciente27.

A psique, longe de ser um mero agregado de emoções, impulsos, complexos, e comportamentos díspares, é uma totalidade viva em busca de uma integração cada vez maior entre os seus componentes, algo impossível de ser realizado sem a superação dos opostos, dos aspectos mutuamente excludentes.

Voltando agora ao problema da individuação, sentimo-nos diante de uma tarefa invulgar: a psique é constituída de duas metades incongruentes que, juntas, deveriam formar um todo. (...) Consciência e inconsciente não constituem uma totalidade, quando um é reprimido e prejudicado pelo outro. Se eles têm de combater-se, que se trate pelo menos de um combate honesto, com o mesmo direito de ambos os lados. Ambos são aspectos da vida. A consciência deveria defender sua razão e suas possibilidades de autoproteção, e a vida caótica do inconsciente também deveria ter a possibilidade de seguir o seu caminho, na medida em que o suportamos. Isto significa combate aberto e colaboração aberta ao mesmo tempo. Assim deveria ser evidentemente a vida humana. É o velho jogo do martelo e da bigorna. O ferro que padece entre ambos é forjado num todo indestrutível, isto é, num individuum. É aproximadamente a isso que denomino “processo de individuação”. Como o nome sugere, trata-se de um processo ou percurso de desenvolvimento produzido pelo conflito de duas realidades anímicas fundamentais28.

Individuação é processo, movimento, por isso a função transcendente atua de forma constante sobre os seus próprios resultados. Esse processo resulta em integrações cada vez mais diferenciadas e complexas, e é motivado pelo si-mesmo, o arquétipo da totalidade, o centro da psique, que por representar o potencial de integração de toda a personalidade é a imagem de deus na psique. O si-mesmo é o motor do processo de individuação, estando completamente imbricado com a função transcendente. No prefácio da publicação em 1959 da versão de 1916 do ensaio sobre a função transcendente, James Hillman escreveu: “O termo ‘função transcendente’, usado aqui para a união do consciente e do inconsciente, não está muito em uso atualmente, tendo sido substituído em um sentido amplo pelo conceito de Si-Mesmo”29.
Em uma carta escrita por Jung em 10.04.1954 ao padre Victor White, é visível a sobreposição do conceito de si-mesmo e de função transcendente, visto que ambos se referem a uma totalidade que se expressa por meio da oposição complementar. “No começo, a compensação é um conflito infernal, mas, depois, quando se compreende o sentido de ‘nirdvanda’, torna-se ela os pilares da porta da função transcendental, isto é, da passagem para o si-mesmo”30.
O si-mesmo seria então uma espécie de refinamento do conceito de função transcendente. Como potencial de integração adormecido nas profundezas inconscientes da psique, o si-mesmo instiga a busca da unidade e a função transcendente é a sua atividade espontânea. Ele é o gatilho que ativa a operação da função transcendente, sendo não só o iniciador, mas também o objetivo final do processo de individuação, a atualização constante do potencial divino de integração dos aspectos excludentes da psique. “Ainda que o si-mesmo seja minha origem, ele é também a meta de minha busca”31.
A individuação seria então um movimento circular, ourobórico, onde o si-mesmo, que no começo é um potencial adormecido sem nenhum conteúdo, é despertado quando aspectos mutuamente excludentes ameaçam rasgar o ego ao meio. Despertado pela tensão energética, o si-mesmo presentifica-se sob a forma da função transcendente e o que no começo era uma unidade vazia e indeterminada transforma-se numa unidade complexa e diferenciada, rica em conteúdos. Essa constante atualização do si-mesmo é o que se chama de processo de individuação.
A operação da função transcendente possui semelhanças explícitas com a trindade cristã, que exerceu um papel primordial no pensamento do jovem Jung ao plantar as sementes da dúvida que o impeliram a buscar respostas fora do dogmatismo comumente aceito. Ela foi alvo de um extenso estudo que se inicia através de paralelos estabelecido com motivos semelhantes em outras culturas. Jung inicia o seu estudo sobre a trindade estabelecendo paralelos entre a trindade cristã e as tríades existentes em diversas mitologias. Entre elas a egípcia é de especial semelhança, provavelmente tendo servido de inspiração para os cristãos. Entre o deus pai e o filho representado pelo faraó egípcio havia um terceiro elemento expressando a unidade de essência que havia entre eles, o ka, a força procriadora divina. Enquanto nas outras tríades haviam três figuras unidas por uma relação de parentesco, no Egito o ka assegurava a identidade essencial entre o deus pai e o seu filho faraó, que por isso era a manifestação terrena do deus. A trindade cristã também possui paralelos com o simbolismo numérico grego. Para os pitagóricos a unidade não é ainda um número e sim o primeiro elemento geral do qual surgiram todos os outros. O 2 é o primeiro número, nele começa a separação, a multiplicação e o processo de contar. O 3 é o primeiro número ímpar e também perfeito pois nele aparece pela primeira vez um começo, um meio e um fim.

Este foi o motivo pelo qual um alquimista da Idade Média argumentava que Deus não louvou o segundo dia da criação, visto que nesse dia (uma segunda-feira – dies lunae) surgiu o binarius, ou melhor, o diabo (enquanto número dois, ou “aquele que duvida”). O número dois pressupõe a presença do número um, do uno; e o número um não é mais do que o uno diminuído e transformado em “número”, por causa da divisão. O “uno” e o “outro” formam um par de contrários, o que não acontece com o um e o dois, pois estes constituem simples números, e só se distinguem entre si exclusivamente por seu valor aritmético. O “uno”, porém, sempre tende a manter sua unicidade e seu isolamento, ao passo que a tendência do “outro” é ser justamente “outro” em relação ao uno. O uno não pretende exonerar o outro, senão perderia seu caráter próprio, enquanto o outro se destaca do uno, simplesmente para perdurar. Daí resulta uma tensão antitética entre o uno e o outro. Qualquer tensão deste tipo, porém, leva a uma espécie de evolução, da qual resulta o terceiro termo. Com a presença do terceiro termo, desfaz-se a tensão e reaparece o uno perdido. O uno absoluto não entra no processo de numeração, nem pode ser objeto de conhecimento. Só pode ser conhecido a partir do momento em que aparece no um, pois no estágio de “uno” falta o “outro” exigido para estas operações. A tríade é, portanto, uma espécie de desdobramento do uno, e sua transformação num conjunto cognoscível. O três é o uno que se tornou cognoscível e que, não havendo a resolução da antítese entre o “uno” e o “outro”, permaneceria num estado de absoluta indeterminação. Por isso, o três comparece como um verdadeiro sinônimo de processo de desenvolvimento dentro do tempo, disso resultando um paralelo com a auto-revelação de Deus como uno absoluto, no desdobramento do três32.

O mundo, o homem, e a divindade são originalmente um todo não perturbado pela crítica. Este é o mundo do pai e do homem em estado infantil. Não havia ainda a clássica pergunta sobre a origem do mal, da existência, da dor e da morte. Quando essas perguntas são levadas a sério inicia-se o processo de reflexão, o julgamento da revelação do pai pelas suas obras com a conseqüente quebra da unidade original. Essa reflexão crítica inicia o mundo do filho sendo na verdade ele que estabelece o pai como pai, visto que alguém só é pai para um filho. A unidade original não era algo determinável, não podendo por isso ser chamada de pai33.
O espírito santo é como o ka, uma força procriadora, uma potência vital hipostasiada que materializa na forma de um filho a realidade espiritual do pai. O pai e o filho se acham unidos numa só e mesma obra ou poder procriador. Na Bíblia ele fecunda Maria na forma de uma pomba, e após a morte de Jesus ele desce sobre os apóstolos como inúmeras línguas de fogo. O fogo e o ar eram formas comuns de manifestação do espírito, mas alguns enxergavam no espírito santo uma relação amorosa ou, como os primeiros cristãos gnósticos, a mãe geradora. O problema de identificar o espírito santo com a mãe de Cristo é que isso pode naturalizar algo que é essencialmente contra naturam, aprisionando o nascimento espiritual de Cristo numa imagem natural de família, pai-mãe-filho.

Realmente, é de máxima importância que a idéia do Espírito Santo não constitua uma imagem natural, mas sim um conhecimento, um conceito abstrato da vida do Pai e do Filho, como terceiro elemento existente entre o Uno e o Outro. A vida sempre extrai da tensão da dualidade um terceiro elemento desproporcional e paradoxal. Por isso, na sua qualidade de “tertium” o Espírito Santo é necessariamente desproporcional e paradoxal. Ao contrário do Pai e do Filho, ele não tem um “nome” especial, nem caráter definido. É uma função e, como tal, é a terceira pessoa da divindade34.

Jung considerava a trindade uma totalidade incompleta que necessitava do acréscimo de um quarto termo. Ele começa seu questionamento do terceiro a partir do Timeu platônico, afirmando que a união de um único par de contrários conduz a uma tríade bidimensional que não é ainda uma realidade corpórea, somente algo imaginado, o que torna necessário dois pares de contrários para representar uma realidade corpórea. No Timeu os dois pares eram representados pelos quatro elementos: ar, terra, água e fogo. Para Jung a passagem do 3 para o 4 é a passagem do imaginado para o real. O quarto termo traz o questionamento do problema do mal e da realidade, e o cristianismo ao excluir de Cristo o impulso instintivo característico da realidade corpórea, torna questionável até que ponto o cordeiro de deus era realmente a união da carne e do espírito35.
No monoteísmo tudo que se opõe a deus não pode vir de outro lugar senão dele mesmo, mas o choque causado por essa afirmação é a razão pela qual o diabo não encontrou acolhida no seio da divindade, tendo sido reduzido a uma privatio boni, mera falta de luz, quando deveria ocupar uma posição antinômica correspondente ao seu status de adversário de Cristo e ser também filho de deus, o quarto elemento da trindade36.
A negação demoníaca contrapõe-se ao ato de amor representado pelo Cristo e o fato de Satã ter sido reconhecido como adversário do filho divino transparece sua autonomia ao ponto de alguns gnósticos terem feito de Satanael o primogênito que tinha Cristo como irmão caçula. O poder do mal foi suficientemente forte para que a própria divindade encarnasse no mundo e se sacrificasse na cruz37.

Por isso convém ter presente que a Cruz representa precisamente o conflito entre Cristo e o Diabo, e foi por este motivo levantada exatamente no centro do universo, entre o Céu e o Inferno, correspondendo à quaternidade. (...) A matéria, com efeito, é o extremo oposto do espírito. É verdadeiramente a morada do Diabo, que tem o seu inferno e o fogo da sua fornalha no interior da terra, ao passo que o espírito luminoso paira no éter, livre das cadeias da gravidade terrestre. (...) Por esta razão é que o Adversário foi imaginado de algum modo, logicamente, como a alma da matéria, pois esta, do mesmo modo que o Diabo, representa aquela oposição dos contrários sem a qual é simplesmente impensável a autonomia da existência individual. O Diabo se caracteriza pela sua oposição e pelo fato de querer sempre o contrário, do mesmo modo que a desobediência caracteriza o Pecado Original. Como já foi dito, são estes os dois pressupostos da obra da criação e portanto deveriam estar inscritos no plano divino e incluídos na esfera do divino38.

A duplicidade de deus não era estranha à especulação religiosa tendo sido expressa em inúmeras imagens, como a do unicórnio, um animal colérico associado ao lado vingativo de deus que largou o mundo na desordem como punição pelo pecado original. Essa irascibilidade foi aplacada graças à habitação no ventre da virgem que abrandou a cólera vingativa tão visível nos textos do velho testamento. Através do feminino deus conheceu o amor39. Essa dualidade é intrínseca ao símbolo que personifica a própria era cristã, conhecida como a era de peixes. No simbolismo astrológico o signo aparece como uma figura com dois peixes nadando em direções contrárias ligados por uma linha. Jung percebeu nessa imagem a união de dois movimentos contrários, um ascendente-espiritualizante, outro descendente-materializante. A primeira metade dos dois mil anos da era de peixes presenciaram a predominância do movimento ascendente, enquanto a segunda caracterizou-se pelo florescimento de tudo aquilo que havia permanecido à sombra de Cristo, sendo por isso a era do Anti-Cristo, o peixe que nada nas profundezas ctônicas40. A segunda metade marca o retorno do feminino, da matéria excluída da trindade. A igreja não foi insensível a essa dinâmica, ensaiando um acréscimo do feminino à trindade na forma da assunção de Maria41.
O dilema entre a trindade e a quaternidade na obra de Jung parece ter se resolvido na clara preferência pela quaternidade. Mas se olharmos atentamente os seus escritos a solução não parece ser assim tão satisfatória. Seu exame da trindade a revelou como um processo suficiente e completo por si mesmo, sem a necessidade do acréscimo de um quarto termo. No começo predomina o estado infantil, a unidade originária com o todo da natureza sem espaço para julgamentos críticos ou conflitos morais. Quando estes surgem, inicia-se o mundo do filho, repleto de ansiedade pela redenção do estado de perfeição unitária, aparentemente perdido para sempre devido à intensificação irreversível da consciência que presenteou o homem com a independência ao mesmo tempo em que o amaldiçoou com a outra face da liberdade, a angústia da separação. O terceiro estágio, o do espírito santo, traz a redenção ao reunir a parte e o todo sem que isso signifique um retorno ao estado infantil e irrefletido. O estágio da unidade é negado no estágio da divisão, que por sua vez é negado no terceiro estágio da reunião. O terceiro não só nega, mas conserva os dois primeiros numa unidade mais ampla e complexa. Esse processo é uma descrição apurada da função transcendente, não havendo um quarto elemento.
Jung fala que a trindade expressava uma totalidade apenas imaginada, não existente na realidade concreta. Mas em outras passagens ele afirmou que a imaginação era o terceiro elemento que resolvia a oposição excludente entre o intelecto e a matéria.

Ao esse in intellectu falta a realidade palpável, ao esse in re falta o espírito. Ora, a idéia e a coisa encontram-se na psique do homem, a qual estabelece o equilíbrio entre idéia e coisa. No fim de contas, o que é a idéia, se a psique não lhe facultar um valor vital? Que é a coisa objetiva, se a psique a privar da força condicional da impressão sensível? E o que é a realidade senão uma realidade em nós próprios, um esse in anima? A realidade vital não é dada exclusivamente pelo comportamento efetivo, objetivo, das coisas, nem pela fórmula ideal, mas em conseqüência de uma conjugação desse comportamento e dessa fórmula, dentro do processo psicológico vital, graças ao esse in anima. Só por meio da atividade vital específica da psique a percepção sensível atinge a profundidade impressiva e a idéia de força eficiente que são parte integrante e indispensável de uma realidade vital. A atividade própria da psique, que não pode explicar-se por uma reação reflexa à excitação dos sentidos (estímulo sensorial) nem considerando-a o órgão executivo de idéias eternas, é, como todos os processos vitais, um contínuo ato criador. A psique cria diariamente a realidade. Só encontro uma expressão para designar essa realidade: a fantasia. A fantasia tanto é sentir como pensar, tanto é intuitiva como perceptiva. Não há função psíquica que não se encontre nela, em associação indiferenciável com as demais funções psíquicas. Tão depressa se apresenta com caráter primordial como sob o aspecto de produto final e temerário da concentração de todas as capacidades. Por isso a fantasia me parece ser a mais clara expressão da atividade psíquica específica. É, sobretudo, a atividade criadora que procura uma resposta para todas as indagações contestáveis, a mãe de todas as possibilidades, na qual se encontram vitalmente vinculados, como todos os extremos psicológicos, tanto o mundo interior como o exterior. A fantasia sempre foi e continua sendo o elemento que serviu de ponte entre os requisitos irreconciliáveis de objeto e sujeito, de extroversão e introversão. Só na fantasia se encontram unidos ambos os mecanismos42.

A própria concepção de símbolo por ele defendida o caracterizava como o terceiro excluído que unia os opostos.

O alternar-se de argumentos e de afetos forma a função transcendente dos opostos. A confrontação entre as posições contrárias gera uma tensão carregada de energia que produz algo de vivo, um terceiro elemento que não é um aborto lógico, consoante o princípio: tertium non datur [não há um terceiro integrante], mas um deslocamento a partir da suspensão entre os opostos e que leva a um novo nível de ser, a uma nova situação. A função transcendente aparece como uma das propriedades características dos opostos aproximados. Enquanto estes são mantidos afastados um do outro – evidentemente para se evitar conflitos – eles não funcionam e continuam inertes43.

O 3 é um símbolo de uma totalidade temporal, processual, onde o terceiro restaura a unidade original em um nível mais elevado. Essa nova unidade é perturbada pela emergência de uma nova oposição que reinicia o ciclo. Seguindo a afirmação junguiana de que o ritmo é um andamento ternário, mas o símbolo resultante é um quaternidade, Edinger considera a quaternidade um símbolo onde o todo não é um movimento dinâmico e sim uma eternidade estática. Enquanto o 3 é processo o 4 é estrutura. O próprio tempo se desenvolve segundo um ritmo ternário onde o passado torna-se presente que por sua vez caminha para o futuro. O todo quaternário, enquanto estrutura estática, fornece uma orientação estabilizadora, como ocorre com as mandalas utilizadas como instrumentos de meditação.

Imagens quaternárias, de mandala, emergem em períodos de turbulência psíquica, e trazem consigo um sentimento de estabilidade e de repouso. A imagem da natureza quaternária da psique fornece uma orientação estabilizadora. Ela nos traz um vislumbre da eternidade estática. As mandalas do Budismo Tibetano são usadas com esse propósito. São instrumentos de meditação que trazem à conscência um sentimento de paz e de calma, como se o indivíduo estivesse seguramente apoiado na substância estrutural eterna e protegido dos perigos da mudança. Os pacientes da psicoterapia às vezes descobrem por si mesmos esse método de meditação a respeito de seus próprios desenhos de mandalas quando sua integridade psíquica corre perigo44.

Ao vincular a trindade ao tempo Edinguer inverte a posição de Jung que considerava o 4 mais concretamente enraizado na realidade que o 3. Como processo dinâmico-temporal, o 3 é algo bem mais concreto que uma totalidade eterna e imutável. A trindade simboliza a individuação como um processo, enquanto a quaternidade seria o alvo do processo, a completude advinda da sua finalização. Como esse processo jamais se completa, cada estágio temporário de completude deve submeter-se à dinâmica trinitária para que a vida não se paralise45.

IMAGINAÇÃO E ANIMA

O primeiro uso do termo arquétipo na obra junguiana ocorreu em 1919 no simpósio intitulado O Instinto e o Inconsciente. Enquanto o instinto compele as ações especificamente humanas, os arquétipos influenciam a compreensão, organizando-a em formas comuns a toda espécie. Juntos eles compõe o inconsciente coletivo que precede a formação do inconsciente pessoal. O arquétipo funciona para a psique como o instinto funciona para o corpo. A psique possui seus instintos, os arquétipos, e por meio desse conceito Jung tenta curar a ferida moderna que dissocia mente e corpo.
Os instintos e os arquétipos só podem ser conhecidos por meio de imagens que os presentificam em suas ausências, tornando cognoscível o incognoscível ao conectar a consciência à dimensão psicóide ao mesmo tempo em que a separa dela. Caso a consciência se identificasse com o psicóide, deixaria de ser consciência, visto que ela se constitui por meio da separação dos opostos, enquanto no psicóide predomina o unus mundus. Desse modo a imagem compõe-se de uma condensação de oposições, representando o instinto e o arquétipo para consciência ao mesmo tempo em que a protege de ser possuída por eles ao unir a infravermelhidão de um ao azul celestial do outro, inibindo o extremismo de uma posição através da outra.
A imagem é corporal e espiritual, sendo o símbolo originado a partir da função transcendente que unifica tese e antítese, psiquizando os arquétipos e instintos psicóides. Essa qualidade conciliadora da imagem que a permite transcender o abismo entre os opostos, entre idéia e coisa, interior e exterior, objetividade e subjetividade, lhe dá um estatuto central na obra junguiana.
A qualidade arquetípica de uma imagem, que a define como imagem no sentido estritamente junguiano do termo, identifica-se com seu potencial simbólico de transcender a lógica racional excludente, unindo o que para ela não pode ser unido. Imaginação é então um outro nome para a operação da função transcendente, ou melhor, é a própria função transcendente funcionando numa forma personificada. Jung considerava imagem e psique como sinônimas, e poderíamos ir mais longe afirmando que a imagem psíquica tem como característica intrínseca ser símbolo, que é o meio através do qual atua a função transcendente.
A função transcendente reúne os opostos graças à atividade do inconsciente que gera um terceiro termo no qual tese e antítese alcançam sua síntese. A consciência não consegue por si só realizar a coniunctio já que sua atividade é essencialmente discriminadora, sendo considerada por Jung sinônimo de logos.

Não existe consciência sem diferenciação de opostos. É o princípio paterno do Logos que, em luta interminável, se desvencilha do calor e da escuridão primordiais do colo materno, ou seja, da inconsciência. Sem temer qualquer conflito, qualquer sofrimento, qualquer pecado, a curiosidade divina almeja por nascer. A inconsciência é o pecado primeiro, o próprio mal para o Logos. (...) Nem o princípio materno nem o paterno podem existir sem o seu oposto, pois ambos eram um só no início e tornar-se-ão um só no fim. A consciência só pode existir através do permanente reconhecimento e respeito pelo inconsciente: toda vida tem que passar por muitas mortes46.

A face revelada pelo inconsciente compensa a orientação dominante da consciência. “Sabe-se que a máscara do inconsciente não é rígida, mas reflete o rosto que voltamos para ele”47. Mas se um é masculino e o outro feminino, então a situação se inverte na mulher, pois sua consciência seria regida por eros e não pelo logos.

O erro da nossa formulação consiste primeiro em termos colocado a Lua simplesmente em lugar do inconsciente, quando isso vale sobretudo para o inconsciente do homem; segundo, em termos deixado de considerar que a Lua não é apenas sombria, quando ela é também um corpo que fornece luz ou, em outras palavras, que ela também pode representar a consciência. Este último é então o caso das mulheres: a consciência da mulher em certo sentido tem mais caráter de Lua do que de Sol. Sua “luz” é a luz mais suave da lua, que antes une do que distingue. Ela não faz, à maneira da luz forte e deslumbrante do Sol, com que os objetos deste mundo, os quais não devem ser confundidos entre si, apareçam naquela forma inexoravelmente distinta e separada, mas reúne muito mais o que está perto e o que está longe em uma aparência enganadora, transforma por suas artes mágicas o pequeno no grande e o elevado no baixo, dilui as cores em um azulado crepuscular e reúne a paisagem noturna em uma unidade jamais suspeitada. Partindo de considerações puramente psicológicas, tentei em diversos outros lugares caracterizar a consciência masculina por meio do conceito de Logos e a feminina por meio de Eros. Nessa tarefa procurei entender por “Logos” o distinguir, o julgar, o reconhecer, e por “Eros” o colocar-em-relação (relacionar). Se a fórmula da natureza lunar para a consciência feminina puder ser justificada – diante do consensus omnium a respeito disso, seria difícil imaginar que fosse diferente – então também se deveria tirar daí a conclusão que sua consciência é de natureza mais obscura, por assim dizer noturna, e que ela decerto, graças a essa iluminação mais parca, pode deixar de considerar certas distinções nas quais a consciência masculina no máximo ainda tropeça. Requer-se verdadeiramente uma consciência de natureza lunar para passar por cima de tudo o que separa e, por ex., unir uma grande família, falando e agindo de tal modo que não prejudique o relacionamento harmônico da partes para com o todo, e até mesmo o promova. E onde houver um fosso por demais profundo, aí um raio de luar produz a ilusão de que ele não existe48.

Na mulher a função transcendente atuaria na forma inversa àquela descrita por Jung, pois ao operar a síntese entre consciência e inconsciente, o segundo traria à tona o logos que racha ao meio o que aparece unido na consciência. Se o logos separa o que eros uniu, então a função transcendente é não só uma operação de síntese que atua sob o poder de eros, como também uma ação discriminadora graças ao brilho da lâmina do logos.
Na época de Jung, a persona social era bem mais rígida e os papéis masculinos e femininos eram claramente diferenciados e definidos, estando sob o julgo do logos patriarcal. Hoje, com o retorno de eros da inconsciência, os papéis se misturam de forma que sol e lua, logos e eros, não podem ser mais literalizados como homem e mulher. Masculino e feminino revelam-se como personificações da função transcendente em seu trabalho de unir o que aparece separado e separar o que aparece unido.
Isso nos leva a questionar se a função transcendente recebeu um tratamento adequado na obra de Jung, visto que foi descrita predominantemente na perspectiva da anima, como uma resolução da cisão causada pela lógica racional excludente através do eros irracional inconsciente. Mas o animus também compõe a função transcendente, o que faz dela não só a unidade-na-diferença como também a diferença-na-unidade, não só psique como também logos. A função transcendente é então psico-logia, não só síntese como também separação dos opostos.
Em Mysterium Coniunctionis, seu último grande trabalho, Jung mergulhou nas profundezas da sizígia estabelecendo a alquimia como o antepassado histórico por excelência da sua práxis psicológica. A explosão de imagens atordoa o leitor desavisado, pois a rica linguagem imagética era considerada por Jung mais adequada na expressão da realidade inconsciente.

O mitologema definido-indefinido e o símbolo ofuscante expressam o processo anímico de forma muito mais precisa, perfeita e portanto infinitamente mais clara do que o conceito nítido; pois o símbolo transmite uma visualização do processo, o que por certo é tão importante quanto uma vivência imediata ou posterior do processo. Essa penumbra só pode ser compreendida mediante uma empatia inofensiva e nunca mediante o expediente rude da clareza49.

Mas de que inconsciente Jung está falando, do masculino ou do feminino? Enquanto a anima está em casa no reino da imaginação, o animus se move no campo das idéias filosóficas, o lugar por excelência do logos. A preferência de Jung pela linguagem mitopoética mostra o quanto seu conceito de inconsciente foi colorido pela anima. A razão lógico-conceitual era, na época de Jung, uma prerrogativa masculina e sua ascensão e refinamento andou de mãos dadas com a disseminação da dominação patriarcal. A consciência mitopoética sofreu uma negação intensa tendo sido identificada com o feminino, pois ambos foram violentamente reprimidos ao ponto de terem sido igualados ao próprio inconsciente.
O inconsciente coletivo, o reino da grande mãe, é uma forma de consciência negada pela consciência coletiva, o reino masculino do herói. A grande questão da psicologia junguiana é o casamento da razão lógico-solar e da imaginação mítico-lunar. A anima recebeu a cota de atenção merecida por Jung, cujo trabalho de resgate da imaginação mitopoética foi um passo importantíssimo no caminho para integridade da consciência. E quanto ao animus? Olhando para a obra de Jung como um todo, não se vê o mesmo grau de compromisso com a razão conceitual que foi dedicada a anima. Mas se a opus magnum é o casamento alquímico do rei sol e da rainha lua, então uma real psico-logia não pode privilegiar apenas uma metade do par, o que nos leva a perguntar: qual a lógica da práxis junguiana? A resposta é clara para qualquer um que se aventure na tradição histórica do logos, pois entre os diversos tratamentos que ele recebeu ao longo dos séculos, nenhum é mais próximo da alquimia junguiana do que a grande corrente dialética, cujos elos incluem Heráclito, Sócrates, Platão, Plotino, Hegel, Marx, entre muitos outros. Toda essa tradição gira em torno da unidade dos opostos, descrita, não em uma linguagem mitopoética, mas na forma lógica da razão conceitual. Assim como Jung retornou aos mitos e à alquimia para resgatar a anima esquecida pela consciência coletiva, todo aquele que aceitar o desafio de levar a opus junguiana adiante, terá de retornar à tradição histórica do animus, para explicitar aquilo que ficou implícito na sizígia junguiana. O caminho foi aberto pelo próprio Jung, cabendo a nós percorrê-lo sem reservas, com toda a dedicação que ele exige.

andre.mercurio@hotmail.com

NOTAS

1.Trecho do livro PSICOLOGIA DIALÉTICA: UMA CRÍTICA INTERNA À PSICOLOGIA JUNGUIANA, escrito pelo autor e disponível em http://clubedeautores.com.br/book/3630--Psicologia_Dialetica
2. JUNG.CG, Memórias, Sonhos e Reflexões, p.136. Rio de Janeiro: Editora Nova Foronteira.
3.JUNG.CG, ibid, p.136.
4.JUNG.CG, ibid, p.137
5.JUNG.CG, ibid, pp.137-138.
6.JUNG.CG, ibid, pp.138-139.
7.JUNG.CG, ibid, pp.139-140.
8.JUNG.CG, ibid, p.150.
9.JUNG.CG, ibid, p.194.
10.MILLER.J, The Transcendent Function. Albany: State University of New York
11.JUNG.CG, A Natureza da Pisque, Obras Completas Vol VIII/2,p. 1. Petrópolis: Editora Vozes,1984.
12.JUNG.CG, Mysterium Coniunctionis, Obras Completas Vol XIV/1. Petrópolis: Editora Vozes, 1985.
13.JUNG.CG, Estudos Sobre Psicologia Analítica,Obras Completas Vol VII, pp. 64-65. Petrópolis: Editora Vozes,1981.
14.JUNG.CG,Tipos Piscológicos, p.244. Rio de Janeiro: Editora Guanabara,1987.
15.JUNG.CG, ibid , p.p 549, 550.
16.JUNG.CG, Psicologia da Religião Ocidental e Oriental, Obras Completas Vol XI. , p. 419. Petrópolis: Editora Vozes, 1983.
17.JUNG.CG, Estudos Sobre Psicologia Analítica,Obras Completas Vol VII , p. 72.
18.MILLER.J, ibid.
19.JUNG.CG, ibid, pp.184-185.
20.JUNG.CG, ibid, p.198.
21.JUNG.CG, ibid, p.220.
22.JUNG.CG, ibid, p.200.
23.JUNG.CG, Estudos Alquímicos, Obras Completas Vol XIII, p.229. Petrópolis: Editora Vozes, 2003.
24.JUNG.CG, Estudos Sobre Psicologia Analítica,Obras Completas Vol VII, p.89.
25.MILLER.J, ibid.
26.MILLER.J, ibid.
27.JUNG.CG, ibid., p.209.
28.JUNG.CG, Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, Obras Completas Vol IX/1 , pp. 280, 281. Petrópolis: Editora Vozes, 2000.
29.HILLMAN.J,apud MILLER, ibid. Todas as citações cujos originais estão em outra língua foram traduzidas sob minha responsabilidade.
30.JUNG.CG, Cartas Vol II, p.338. Petrópolis: Editora Vozes, 2002.
31.JUNG, ibid, p.365.
32.JUNG.CG, Psicologia da Religião Ocidental e Oriental, Obras Completas Vol XI, pp.119-120.
33.JUNG, ibid.
34.JUNG, ibid.p.159.
35.JUNG, ibid.
36.JUNG, ibid.
37.JUNG, ibid.
38.JUNG, ibid.pp.170,171,172.
39.JUNG.CG, Psicologia e Alquimia, Obras Completas Vol XII. Petrópolis: Editora Vozes, 1994.
40.JUNG.CG, AION – Estudos Sobre o Simbolismo do Si-mesmo, Obras Completas Vol IX/2. Petrópolis: Editora Vozes, 1982.
41.JUNG.CG, Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, Obras Completas Vol IX/1.
42.JUNG.CG, Tipos Psicológicos, pp. 80-81.
43.JUNG.CG, A Natureza da Pisque, Obras Completas Vol VIII/2, p.22.
44.EDINGER.E, Ego e Arquétipo, p.246. São Paulo: Cultrix, 2000.
45.Para Edinger o conflito entre o 3 e o 4 representa a oposição entre os aspectos dinâmicos-processuais e os estáveis-estruturais da totalidade. Apesar de Jung descrever a função transcendente como a produção do terceiro excluído, J.Miller vê nela um exemplo psicológico do axioma da profetiza Maria onde “o um torna-se dois, o dois torna-se três e do três vem o um, como o quatro”. A função transcendente seria o terceiro excluído que ao reunir o que estava dividido origina o quarto que restabelece a unidade psíquica.
46.JUNG.CG, Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, Obras Completas Vol IX/1 , p.104.
47.JUNG.CG, Psicologia e Alquimia, Obras Completas Vol XII, p.36.
48.JUNG.CG, Mysterium Coniunctionis, Obras Completas Vol XIV/1, pp.172-173,174.
49.JUNG.CG, Estudos Alquímicos, Obras Completas Vol XIII , p.163.

ESPÍRITO NA SIZÍGIA

Obs: Os números que se vêem ao longo do texto correspondem às notas.


ESPÍRITO NA SIZÍGIA

ANDRÉ DANTAS

A psicologia arquetípica surgiu no cenário junguiano combatendo ferozmente a ênfase dada pelos junguianos tradicionais à unidade psíquica representada pelo arquétipo do si-mesmo. A importância que Jung deu ao arquétipo do si-mesmo é vista por Hillman como a subjugação da multiplicidade psíquica pelo monoteísmo que enxerga os fenômenos a partir de um ponto de vista único. Para Hillman, os junguianos clássicos confundem a psicologia com uma disciplina do espírito. A concentração no si-mesmo é a vitória do monoteísmo sobre o politeísmo, do uno sobre o múltiplo, do espírito sobre a alma. O trabalho psicológico requer multiplicidade, pois a psique é composta por uma multidão de complexos exigindo uma perspectiva politeísta capaz de fazer jus à sua complexidade. Quando o si-mesmo assume um grau demasiado de importância o espírito domina a alma. O modo como o processo de individuação é tradicionalmente descrito, é o sintoma de uma psicologia aprisionada na linguagem do espírito. Alma, e não o si-mesmo, é o foco da psicologia, e a individuação seria mais bem entendida não como a realização do si-mesmo, mas como o trabalho de cultivo da alma.
Na psicologia arquetípica a alma é uma perspectiva, um modo de olhar os fenômenos e não algo que está objetivamente neles, um movimento e não uma substância. Alma deriva do grego psyché, que no latim foi traduzido por anima, sendo o ponto de vista da interioridade em qualquer lugar e não apenas da interioridade humana. Trata-se de uma perspectiva que converte os eventos em experiências, um espaço intermediário entre a mente e o corpo, entre a reflexão e a ação. Não vemos a alma, mas vemos através dela, e o olhar da alma permite ver as suposições implícitas em qualquer afirmação, desliteralizando-a. Tentar definir a alma é um problema filosófico que deve ser visto acima de tudo como um fenômeno psicológico que brota do próprio desejo da alma por autoconhecimento. Esse desejo é melhor satisfeito através daquilo que é intrínseco a sua constituição: imagens. Psicologia enquanto logos da alma é um discurso imagético, metafórico, uma expressão da base poética constitutiva da mente1.
Para Hillman o engajamento com a alma não deve ser confundido com uma disciplina espiritual. Enquanto imaginar é a atividade básica da alma, a posição do espírito é cega para fantasia acreditando que suas afirmações são literalmente reais. Teologia, metafísica e objetividade científica são as atividades por excelência do espírito visto que são incapazes de enxergar através das suas exigências de verdade, ordem, estabilidade, claridade e distanciamento. A diferença entre as duas posições é descrita por Hillman por meio de uma metáfora geográfica. Enquanto o espírito situa-se nos picos mais altos, a alma encontra-se nos vales mais profundos. O primeiro ascende às alturas abstraindo-se das paixões em busca da unidade e da solidão, enquanto a segunda aprofunda-se no vale das paixões necessitando de envolvimento, eros e comunidade. A linguagem do espírito é literalmente objetiva enquanto a da alma é imaginalmente metafórica. Três qualidades fundamentais diferenciam o cultivo da alma das disciplinas do espírito: 1) Interesse pela patologia, pelas paixões que impulsionam a psique. 2) Lealdade ao humor nebulosamente aquático da anima, com suas confusões e personificações. 3) Compromisso sincero com a discórdia cacofônica do politeísmo, sua fragmentação e multiplicidade. Essas diferenças impedem que o cultivo da alma seja confundido com as disciplinas espirituais, sejam elas filosóficas, teológicas, científicas ou meditativas2.
Mas no capítulo final de um estudo sobre a anima, Hillman opera uma reviravolta no seu pensamento afirmando que o envolvimento com a alma implica um mútuo envolvimento com o espírito. A anima está sempre acompanhada e sua essência só pode ser captada em um contraste3. Esse insigth remonta a Jung que afirmava que aquele que desconhecesse o significado e alcance universal do motivo da sizígia dificilmente poderia opinar acerca do conceito de anima4. Seus últimos trabalhos abordam a anima principalmente através da sua conjunção com o animus. Como a anima manifesta-se sempre acompanhada do animus, qualquer afirmação sobre ela é, mesmo que apenas implicitamente, uma afirmação sobre o animus e por isso a melhor posição para se enxergar qualquer um é o outro deles. Não se pode ter um sem o outro, e por isso todo estudo sobre a anima é também um estudo sobre o animus, quer se esteja consciente ou não. A noção de sizígia exige que qualquer exame profundo da anima explore em igual profundidade o animus e não se faz melhor justiça à anima do que dedicar tempo e atenção ao animus5.
Masculino e feminino tem sido tradicionalmente o modo como a sizígia tem sido abordada pela psicologia junguiana. Mas Jung sugere que a personificação feminina assumida pela anima pode não lhe ser assim tão essencial.

Na projeção, a anima sempre assume uma forma feminina, com determinadas características. Esta constatação empírica não significa no entanto que o arquétipo em si seja constituído da mesma forma. A sizígia masculino-feminino é apenas um dos possíveis pares de opostos, mas na prática um dos mais importantes e freqüentes. Ela tem muitas relações com outros pares (de opostos) que não apresentam diferenças sexuais, podendo pois ser colocados numa categoria sexual apenas de modo forçado6.

Pensar em termos de gênero inevitavelmente leva a sizígia para dentro do relacionamento homem-mulher, e à concepção de que a anima é exclusiva dos homens e o animus das mulheres. Se for esse o caso então o único modo deles se encontrarem é na relação homem-mulher. Mas os arquétipos são transpessoais, não podendo ser confinados em gêneros ou em etapas específicas da vida. Anima não é propriedade privada dos homens assim como o animus não é das mulheres. A sizígia não ocorre somente nas relações interpessoais, mas também dentro de cada um de nós. Homens também agem guiados pelo animus e as mulheres não são imunes à ação da anima. Isso tem levado muitos psicólogos a malabarismos contorcionistas ao tentar explicar essa dinâmica cotidiana em termos de anima do pai ou animus da mãe. Tais peripécias falham porque não levam em consideração o ponto mais elementar da relação dos dois, a projeção interior. Projeções ocorrem não apenas fora, no mundo exterior, mas também entre partes da psique. Somente com a interiorização da projeção é possível reconhecê-la como uma atividade que acontece às cegas entre anima e animus interiores7.
Em qualquer imaginar da anima seja ele produtivo, lascivo ou malicioso, o espírito animus pode surgir e criticar, e é essa a origem do espírito crítico, aquela parte da psique que se distancia, abstrai, compara e também pode menosprezar. Este animus está a serviço da alma realizando a separatio que distancia a mente do humor. Como o animus está ligado a anima, o espírito crítico conserva traços do humor subjetivo negado sob a forma de um humor objetivado em opiniões. O espírito objetivo que é a meta de toda a jornada intelectual ocidental é o esforço da alma para libertar-se por meio do animus do vale das suas paixões8.
Quando se pensa ter captado algo da anima em uma imagem, humor ou projeção, a questão que se segue imediatamente é onde se encontra o animus? Ele provavelmente está no próprio ego que percebe, e que antes de tudo possibilita a observação. A observação de um se dá através do outro, o que significa que a observação também é uma forma de projeção, pois a própria perspectiva assumida define aquilo que é possível perceber. Na medida em que a anima representa a interioridade, a fantasia, a função reflexiva, as conexões e o pessoal, o animus deve aparecer na exterioridade, nas atividades, de forma impessoal, objetiva e literal9.
Em sua origem latina a anima aparece como o substantivo respiração enquanto o animus era a atividade de respirar, sendo sinônimo da alma racional cujas qualidades são as funções e ações da consciência como atenção, intelecto, mente, vontade, coragem, arrogância e orgulho, tudo que hoje se atribui ao ego. Se muito do que a psicologia tem chamado de ego refere-se ao animus na sizígia, então aquilo que está por trás do ego é o animus. O ego é uma idéia do animus, o resultado do animus que se dissociou da sua conexão com a anima colocando-se como independente da sizígia. A consciência da anima ou de animus implica o reconhecimento do estilo de inconsciência em qualquer constelação específica, uma inconsciência determinada pelo seu outro lado arquetípico. A identificação da personalidade egóica consciente com qualquer uma das figuras da sizígia é o papel arquetípico que o ego é constrangido a representar, pois a constelação de ambos só se dá com a intervenção da personalidade consciente10. Como os dois estão sempre juntos, a intervenção da personalidade consciente é na verdade a atuação de uma das metades. Tal dinâmica é quase irreconhecível porque a personalidade consciente é o ponto mais iluminado e exatamente por isso também o mais sombrio. Jung, no seu estudo sobre a sizígia percebeu que o sol, a imagem alquímica da consciência, é em si um corpo escuro, luz por fora e escuridão por dentro e por isso o ego, seu representante contemporâneo, seria uma personificação relativamente constante do próprio inconsciente, uma fonte de luz onde há escuridão suficiente para um sem número de projeções11. É a constância dessa personificação que torna as decisões e atitudes do ego tão compactas e opacas ao outro inconsciente. Impedido de enxergar o outro e de se enxergar através do outro a consciência egóica acredita-se literalmente real12.
Esse in anima leva sempre a uma infusão com o animus e a fenomenologia aérea da alma transparece sua relação com o espírito pneumático. Estar na alma é também esse in animus, pois sempre que se toca a alma o espírito também vibra. Devido à sizígia a psicologia não pode excluir o espírito do seu campo de atuação, de modo que as idéias tornam-se experiências psicológicas e experiências convertem-se em idéias psicológicas. Ser psicológico é ser também espiritual, pois psicologia é a interpenetração de psique e logos, onde a imaginação ilumina-se com intelecto que por sua vez refresca-se com fantasia. Isso exige que o espírito e alma mantenham-se diferenciados (a demanda do espírito) e conectados (a demanda da alma). “Considerar cada posição em termos de sizígia reflete uma consciência hermafrodita, na qual o Um e o Outro co-habitam, a priori, todo o tempo; uma duplicidade hermética e um acasalamento afrodítico ocorrendo em cada evento”13.
Hillman espera atender as demandas de separação e conexão através da imaginação mítica que os personifica num tandem.

Imaginar em pares e casais é pensar mitologicamente. O pensamento mítico conecta os pares em tandens,em vez e separá-los em opostos, que é o modo da filosofia. Opostos prestam-se a pouquíssimos tipos de descrição: contraditórios, contrários, complementares, negações - formal e lógico. Tandens, por sua vez, como irmãos, inimigos, negociantes ou amantes apresentam infinita variedade de estilos. Tandens favorecem o intercurso – em inúmeras posições. A oposição é apenas um dos vários modos de se estar num tandem14.

Mas isso faz jus às necessidades do animus? Imaginar a sizígia em tandens mitopoéticos sacia as demandas da anima, pois mito, metáfora e fantasia estão para a anima como a água está para o peixe. Serão eles os meios adequados para expressão do espírito? Apesar do fantástico insight a respeito da sizígia, ele não provocou nenhuma alteração no modo de expressão da psicologia arquetípica. A sizígia foi mantida a distância da teoria e seu poder explosivo permaneceu encapsulado. Mesmo que a metáfora raiz da psicologia tenha se revelado como a outra face de um dos seus inimigos mais combatidos, nenhuma mudança real aconteceu, e o animus continuou exteriorizado. A psicologia arquetípica continuou uma atividade da imaginação e o espírito foi reduzido ao imaginar da anima. Há alguma mudança aqui? Personificar o espírito difere de alguma forma daquilo que a psicologia arquetípica vinha fazendo até então?
É ingenuidade abrir as portas para o animus e esperar que ele não desembainhe sua espada realizando cortes lógicos no coração das imagens, clareando suas contradições implícitas. É ingênuo acreditar que a anima poderia permanecer virginalmente intacta e continuar imaginando e re-imaginado a realidade sem ser calcinada pela clareza flamejante do animus. É mais ingenuidade ainda acreditar que o animus poderia se conformar em esculpir e admirar imagens sem exercer sua iconoclastia, realizando aquela que é a sua atividade por excelência, o trabalho do conceito.
Sendo a sizígia a revelação de que não se pode ter alma sem espírito, então ela não pode permanecer como um conteúdo ao lado de outros na práxis arquetípica, pois a alma é um modo de abordar todo e qualquer conteúdo como metáforas do fazer alma. Se o espírito for realmente interiorizado seu modo de atuação deve permear todo o estilo arquetípico de lidar com os fenômenos. Mas a psicologia arquetípica continuou posicionada unilateralmente na fantasia mitopética. Caso Hillman tivesse lido aquilo que ele próprio escreveu, a psicologia arquetípica teria interiorizado a sizígia em sua própria forma de estar no mundo tornando-se uma real psico-logia.No entanto, Hillman continuou ofuscado pelas fantasias da anima e não enxergou aquilo que estava bem na sua frente. A linguagem do animus na sizígia é exatamente a filosofia dos opostos complementares e suas descrições lógicas através da negação e da contradição. O problema é que o logos abordado por Hillman ainda não sofreu o influxo da sizígia, e por isso a sizígia continuou imune à ação da lógica. O logos permanece sinônimo da lógica analítico-formal dedicada às regras do correto pensar que trata a fantasia como um absurdo. Essa é a lógica atacada por Hillman e por Jung, mas ela não é a única possível, havendo uma longa corrente filosófica, cujos elos atravessam séculos de história, que se dedicou a uma lógica capaz de expressar a sizígia em sua plena potência. Nesse estilo de filosofia a unidade dos opostos é tematizada não em uma linguagem mitopoética, mas a partir da razão lógica do conceito. Jung resgatou a alquimia em busca das raízes históricas da sua psicologia, todavia a realização da sizígia requer também a busca de uma tradição histórica capaz de fornecer um logos fiel à plasticidade aquosa da coniunctio. Logo a realização da sizígia demanda um profundo envolvimento com a tradição dialética.
O envolvimento com a dialética leva a um problema lógico no modo como a sizígia é apresentada por Hillman. Ele coloca lado a lado oposições e personificações míticas, afirmando que a contradição é uma das muitas formas de se estar num tandem. Eu diria que ao invés de serem vizinhos a oposição está dentro do tandem, sendo aquilo que faz dele uma real sizígia. Oposições lógicas não podem ser colocadas lado a lado com as imagens como se a diferença entre elas fosse similar à diferença entre múltiplos tons de cores. Não há uma simples continuidade no caminho que vai de uma para outra, e a maneira como Hillman as trata faz delas indiferentes à sua diferença, à ruptura, à descontinuidade que há entre ambas. Isso demonstra que a sizígia realmente não aconteceu, pois o pensamento que a pensa continua preso na extensividade espaço-temporal. Nessa concepção um ente primeiro manifesta-se e só então entra em relação, porque o que ele é em si-mesmo independe da relação em que ele se encontra, sendo ela secundária, uma mera adição a sua forma de ser. A relação é apenas uma dentre as múltiplas coisas que lhe acontecem, algo contingente, arbitrário, um acidente externo ao seu ser. Isso se dá porque tanto a imaginação como a lógica formal lidam com seus conteúdos como entidades extensas, partículas que se juntam ou se separam, mas que por mais próximas que estejam nunca estão realmente unidas, apenas agregadas umas as outras.
A psicologia arquetípica resgatou Dionísio das profundezas da imaginação mítica, todavia ele permaneceu como um conteúdo da imaginação, restrito às intensidades somático-emocionais e impedido de permear a própria lógica do seu pensamento, regido pelo mesmo distanciamento apolíneo que acredita combater. Como personificar é intrínseco a imaginação, ficar nela significa continuar vítima da lógica extensiva, onde duas coisas não podem ocupar o mesmo lugar no espaço. A imaginação não consegue personificar o espaço por ele ser anterior a toda e qualquer personificação, sendo a própria condição para a atividade de personificar. A personificação é o próprio ato de conservar a concepção extensiva visto que um ser personificado é um ser com propriedades espaciais, mesmo que metafóricas.
A lógica formal e a psicologia arquetípica compartilham a mesma concepção sólida de realidade, o que muda é o modo como cada uma apresenta os seus conteúdos, uma de forma clara e racional enquanto a outra numa forma poética e imaginal. Para ambas uma relação é como uma roupa que pode ser colocada ou tirada sem maiores problemas, pois aquilo que está em relação é imune à relação em que se encontra. Hillman estava certo ao afirmar que o espírito estava junto da alma o tempo todo realizando a separatio, abstraindo, fragmentando. Personificar não desfaz a abstração, apenas a maqueia com mitopoesia. Se a psicologia arquetípica deseja ser realmente uma psicologia da interioridade ela precisa conscientizar-se que interiormente é governada pelas mesmas leis extensivo-abstratas vigentes no território egóico. Uma psicologia informada pela sizígia necessita de uma lógica onde a identidade não seja sinônima de dissociação e a diferença não seja indiferente ao que diferencia, em suma exige dialética.

DIALÉTICA NA SIZÍGIA

A dialética é a lógica da interioridade (psico-lógica), virtualmente interna a todo e qualquer fenômeno, inclusive aqueles que se manifestam como amizade, negócios, amor ou irmandade. Nessa lógica a essência, aquilo que algo é, define-se em uma relação, que é o modo primordial como qualquer coisa existe. Se para o existencialismo a existência precede a essência, na dialética a essência de qualquer ser é existir, na medida em que existir é estar em relação15. Se a forma primária de manifestação é a relação, isso quer dizer que a relação é essencial ao que algo é, ou melhor é aquilo que algo é, a sua essência mais íntima. A identidade de algo não lhe é simplesmente interior e também não é exterior. A identidade é um interior exteriorizado e um exterior interiorizado, ou seja, é uma exteriorização interiorizante e uma interiorização exteriorizante, e por isso não é fixa, mas está sendo definida sempre por meio dos contextos dos quais participa.
Um exemplo é o hieros gamos de Zeus e Hera. Para Hera, Zeus deveria ser marido e legislador, contudo seus impulsos criativos explodem de forma promíscua, apropriando-se anarquicamente daquilo que deseja, desestabilizando interiormente a família e a sociedade, as esferas de poder de Hera, que para Zeus aprisionam a fantasia procriativa da sua imaginação em liberdade, intensamente dedicada a gerar novas formas de vida16. Esse mesmo deus exibe uma face bem diferente no mito de Prometeu, onde ele não dissemina, mas ciumentamente guarda para si as chamas criativas. Prometeu não é Hera e por isso Zeus manifesta-se com atributos contrários aos exibidos em seu casamento. Sua essência é aquilo que ele está sendo em relação.
A sizígia não é sinônima de relação pura e simplesmente. Uma relação de amor, de negócios, de amizade, de irmandade, de ódio é sizígia quando os seres que estão em relação e a relação em que os seres estão determinam-se mutuamente. Sizígia é uma relação interna, um interior relacional. Sizígia é um nome mítico para o que em filosofia foi denominada dialética. Relações externas não afetam os seres em relação, já que entre eles reina uma diferença indiferente aquilo que cada um está sendo. A palavra chave aqui é oposição, já que afirmar que um ser se opõe ao outro implica que os dois não são apenas diferentes, mas que também comungam, caso contrário não se oporiam. Na oposição a identidade não recai fora da diferença, mas a determina e é por ela determinada17.
Fenômenos complexos exibem múltiplas determinações, logo múltiplas oposições. Dependendo do contexto algumas se manifestam enquanto outras permanecem latentes. A oposição ocorre entre os predicados, entre as qualidades que determinam o que algo é. A lógica extensiva abstrai o sujeito dos predicados que o determinam. De um lado o sujeito, do outro os predicados que o qualificam e entre ambos a indiferença. Essa concepção estabiliza o ego como sujeito e todo o resto como objeto da sua vontade. O ego não é apenas um conteúdo, um complexo, ou uma região psíquica. Reduzi-lo somente a isso é continuar aprisionado em seu território extensivo. Ego é toda forma de pensamento que abstrai um ente das suas qualidades, que toma sua existência como primária e os predicados que o definem como secundários18. Ego é o modo abstrato de conceber a realidade como um aglomerado de partículas extensivas indiferentes à suas relações, aos processos que realizam, e a psicologia arquetípica com sua insistência unilateral na imaginação mitopoética continua acorrentada a essa concepção de mundo.

Claro, eu penso conceitualmente ... Somos pessoas modernas e civilizadas e precisamos de nossos conceitos. Certamente, não quero com isso jogar fora toda a linguagem conceitual, mas, genericamente falando, é na linguagem conceitual que estamos presos, onde estamos no ego, onde as coisas estão mortas, onde retornamos ao que está feito e acabado e onde as imagens não podem nos alcançar19.

A imaginação é colocada de um lado e o pensamento conceitual do outro, cada um na ponta de uma linha, e a lógica linear que dissocia os dois continua intacta. A psicologia arquetípica já reflete acerca das imagens e por isso já está comprometida com o pensamento, mas por refletir diretamente apenas sobre as imagens ainda as pensa a partir da extensividade intrínseca à lógica formal que acredita atacar. Ela combate o pensamento abstrato personificando-o através da imaginação, mas o movimento é unidirecional. Isso não quer dizer que não haja retorno, ele acontece sutilmente com a imaginação dissociando os conteúdos uns dos outros, encarcerando-os na sua forma extensiva ao personificá-los, exteriorizando-os das relações que participam. Pensar as imagens não significa apenas personificar o pensamento lógico, tomando-o como um trabalho de Apolo ou do senex. Isso é apenas metade de um movimento que para completar-se exige a despersonificação espaço-temporal através da interiorização das imagens nos seus atributos. A extractio da essência ocorre por meio da mortificatio da aparência. Não se trata de uma morte unilateral, mas da coniunctio da essência e da aparência dentro da sua própria separação. A re-união das qualidades determinantes de uma imagem com as relações em que ela aparece. Sua identidade é a sua fenomenologia se a relação é o seu aparecer. A lógica dialética é o ato de dobrar a linha explicitando a identidade-na-diferença entre as duas pontas.
Enquanto restringir-se a imaginação, a psicologia atuará inconscientemente (acting-out) a lógica extensivo-abstrata governada pela exclusão. Ou picos ou vales. Essas imagens estáticas da geografia imaginal dissociam alma e espírito coagulando-os em espaços mutuamente excludentes20. A diferenciação de ambos é de extrema importância, mas é apenas a primeira metade da obra. Completá-la exige a solutio desses coágulos imaginais e a coniunctio de picos e vales. A psicológica assemelhar-se-ia aos antigos rios míticos que descem do alto do céu em direção a terra, fluindo para o mundo subterrâneo e reascendendo para derramar-se novamente das mais elevadas montanhas. Não o rio enquanto corpo imaginal, mas o seu movimento, a sua fluidez, aqua permanens, a solidez do vale e do pico enquanto lugares especificamente diferenciados gerada pela própria dissolução de um no outro.
Algo assim não pode ser imaginado, mas pode ser pensado negativamente quando o pensamento nega a si-mesmo como intelecto abstrato conservando-se nos vales mais profundos da imaginação. Não se trata da separação e depois a reunião, pois isso seria continuar preso na extensão temporal, onde a causa precede o efeito. Como a lógica do pico é informada pelo vale, cada um é o que é a partir do outro. O movimento ascendente pressupõe o movimento descendente e vice-versa. Quando pensados picos e vales revelam-se-criam-se como personificações de momentos específicos de um movimento autocontrário.
A psicologia arquetípica ao exilar-se no mundo inferior deixa o espírito livre para continuar literalizando suas abstrações. A rejeição do espírito afirma e estabiliza sua lógica abstrata não apenas lá no alto, mas também embaixo, restringindo a psicologia a fenômenos específicos do real como se ele fosse uma extensão compartimentalizada e não um devir interconectivo. Nem picos e nem vales, mas os dois conservados pela negação é o que constitui a psicologia enquanto identidade negativa de psique e logos.

RETORNO DO SI-MESMO

A psicologia arquetípica iniciou sua jornada exercendo uma pesada crítica ao foco dos junguianos tradicionais sobre o si-mesmo. Mas no momento em que ela reflete sobre sua concentração sobre a anima ele retorna enriquecido pela negação que sofreu. O si-mesmo como a unidade dos opostos não é mais um arquétipo separado dos outros, uma entidade que impulsiona a individuação a partir de fora. Ele é a singularidade mais íntima de toda e qualquer coisa, aquilo que algo é em si-mesmo.

O si-mesmo é uma unidade, consistindo porém de duas, isto é, de opostos, caso contrário não seria uma totalidade. (...) Apesar da natureza conservadora, os arquétipos não são estáticos, mas estão num constante fluxo dramático. Por isso o si-mesmo como mônada ou unidade contínua estaria morto. Mas ele vive na medida em que se divide e se une de novo. Não há energia sem opostos21.

A anima revelou-se como sendo em si-mesma a outra face do espírito, uma projeção sua e vice-versa. Eles são os reflexos invertido um do outro. A alma é em si-mesma a negação do espírito, que por sua vez é a negação da alma. Eles se determinam negando um ao outro. A alma é o que é, por negar o que o espírito é, sendo o não-espírito, assim como o espírito é a não-alma. A alma é então a não-não-alma e o espírito o não-não-espírito. Ao reencontrar-se no outro cada um retorna a si-mesmo enriquecido pela jornada negativa que sofreu, tornado-se aquilo que eles já eram ao reconhecerem-se como sendo neles mesmos o seu outro. A natureza de cada um é contra naturam, opondo-se a si-mesma e efetivando-se numa dissolução no outro que coagula aquilo que cada um é. Ambos negam duplamente a si-mesmos no outro, e por isso se afirmam através do outro. Se um não fosse o que fosse o outro não seria o que é. Assim como uma luz só torna-se visível ao ser refletida por uma superfície que lhe serve de obstáculo, a alma só torna-se consciente de si ao ser refletida no espírito, e é por sofrer a negação da alma que o espírito determina-se.
Determinatio est negatio (Espinosa). Sem negação não há si-mesmo, visto que ele é a determinação mais íntima de toda e qualquer coisa. Se for permitida a negação desenvolver-se até o final ela nega a si-mesma tornando-se aquilo que une a partir da própria separação. Sem negação haveria apenas um aglomerado amorfo e indiferenciado, mas graças ao poder do negativo, uma coisa deixa de ser um algo qualquer para ser algo singularmente específico. Tal processo poderia ser chamado de indivi-doação22, visto que cada um é mais individualmente si-mesmo ao doar-se para o seu outro.
Individoação, a realização do si-mesmo, não se restringe ao personalismo egóico, sendo um devir universal através do qual qualquer ser singulariza-se. Enquanto oposição o si-mesmo é um universal idêntico ao seu conceito, identidade da identidade e da diferença. Essa é a sua expressão mais pura e abstrata, mas enquanto universal ele não possui nada fora de si, incluindo a si-mesmo, e por isso opõe-se ao seu próprio conceito multiplicando-se em um número infinito de singularidades. Ele faz isso sem sair de si, ou melhor, ele penetra cada vez mais em si ao sair de si. Por sua essência ser oposição ele interioriza-se exteriorizando-se e unifica multiplicando-se. Ele é a unidade da unidade e da multiplicidade e aprofunda-se na sua essência conceitual única na medida em que aparece de forma múltipla. Essa é a sizígia expressa na linguagem conceitual abstrata do logos, que por ser dialético, é o outro de si-mesmo, uma abstração que personifica-se em um sem número de imagens. O logos é em si-mesmo o seu outro, psique, e vice-versa. Fazer psicologia exige realmente pensar as imagens, dissolvê-las no movimento lógico do conceito, que se deixado livre para seguir a sua essência adquire uma concretude sensorial. A psicologia como sizígia não dissocia monoteísmo de politeísmo, sendo um monoteísmo de conceito (demanda do espírito) e um politeísmo de imagens (demanda da alma). Não é a simples soma de um com o outro, mas a negação de um através do outro que simultaneamente conserva um no outro. A psicologia despersonifica as imagens pensando-as ao mesmo tempo em que personifica o pensamento imaginando-o, e ela só é psico-lógica se existe como a realização desse movimento urobórico onde cada oposto devora e cria a si-mesmo no outro.

PRINCÍPIO DA COERÊNCIA

O princípio que rege a dialética não é o princípio da não-contradição que rege a lógica analítico-formal, mas o princípio da coerência, que nega-conserva o princípio da não-contradição. O princípio da coerência conserva a importância da contradição para razão, mas nega que ela seja aquilo que a impossibilita, pois razão é movida pela contradição, sendo o que ela é em-si-mesma. O princípio da coerência é a identidade-diferenciada de dois outros princípios.
O primeiro é o princípio da identidade, tão básico e fundamental que quase nunca nos damos conta que o estamos utilizando. Ele diz que A é A, e está sendo sempre pressuposto como verdadeiro. O princípio da identidade se divide em três subprincípios23.
Identidade simples: Quando se diz A ou qualquer outra coisa, está se dizendo uma identidade simples. O A se destaca do seu pano de fundo e aponta para algo de determinado. Mas apesar de apontar e dizer algo determinado não há ainda uma predicação completa visto que sujeito e predicado não foram distinguidos um do outro24.
Identidade Interativa: O primeiro A se repete tornando-se A e A, podendo se repetir de novo e de novo tornando-se A, A, A. Enquanto a repetição é interativa é repetição do mesmo, não surgindo nada de novo. Mas identidade interativa é a primeira e mais básica forma de multiplicidade, e apesar de ser ainda uma multiplicidade do mesmo, é a partir dela que se inicia o movimento25.
Identidade reflexa: Começa quando se diz que A é igual a A. Aqui a identidade chega à plenitude, sendo agora possível formular a primeira predicação onde o sujeito é o primeiro A e o predicado o segundo A. Assim surge a tautologia, A = A, a mãe de todas as predicações ulteriores26.
O segundo princípio é o princípio da diferença, que começa quando se acrescenta à série de A, A, A, algo que não é apenas a repetição de A. Diferença é tudo que não é A. Essa diferença ainda é indeterminada, abstrata, determinando-se quando o não-A se torna B, C, D e assim por diante27.
Quando estes dois princípios se encontram três coisas podem acontecer. Um do dois permanece enquanto o outro desaparece. Os dois desaparecem e nada resta. Na terceira opção entra em cena o princípio da coerência, que funciona por meio de uma contradição concreta. Dizer A e não-A anula o dito, nada sobra, a razão silencia e o caos irracional prolifera. Em uma contemporaneidade dominada pela razão instrumental tecno-científica, o irracionalismo caótico é por demais sedutor e se dissemina como formação reativa. Um é o outro-si-mesmo do outro28. Mas se esse não-A assume a forma determinada de um B ou C é preciso se deixar permear pelo conflito entre os dois e refletir se o que na aparência é regido por Marte, na essência o é por Vênus. O que na razão analítica é excludente, na razão dialética é includente. O que em uma paralisa a ação da razão para outra é o combustível do seu movimento. Na dialética a contradição existe, não é impossível, e é através dela que a razão re-flexiona em-si-mesma se reencontrando no interior do próprio real.
O princípio da coerência é a unidade dos dois princípios que aparentemente se excluem. Identidade é aquilo que não é diferença e diferença é aquilo que não é identidade. O ser de um é o não ser do outro, e por isso o conceito de identidade é a negação do conceito de diferença e o conceito de diferença é a negação do conceito de identidade. Os dois só são coerentes consigo por incluírem na sua afirmação a negação do outro. A identidade do princípio da identidade consigo mesmo só se dá a partir da diferença com o princípio da diferença, assim como a identidade do princípio da diferença consigo mesmo só ocorre a partir da diferença com o princípio da identidade. Identidade contém a diferença em-si e a diferença contém a identidade em-si. Esse é o princípio da coerência, identidade da identidade e da diferença, que é a sizígia expressa na linguagem conceitual do animus e cujas manifestações concretas são o objeto de estudo da psico-logia.

DIALÉTICA E HISTÓRIA

A dialética não é relação no sentido de uma estrutura estática, mas no sentido de uma circulação contínua entre os opostos. Esse devir não é temporalmente extensivo, vindo do passado ao presente em direção ao futuro, mas é aprofundamento total e completo no presente que é efeito e causa do passado e do futuro. O tempo psicológico não é linear, extensivo, pois não flui apenas num sentido, do passado para o presente e deste para o futuro, mas também flui do futuro para o presente e deste para o passado. Futuro, presente e passado se co-determinam e a psicologia lida com um passado que é presente e um presente que é passado, e com um futuro que é presente e um presente que é futuro, ou seja, com um presente absoluto, unidade autocontrária de passado e futuro.
O presente não apenas determina e é determinado pelo passado, mas também determina e é determinado pelo futuro. Por ser a identidade-diferenciada do passado e futuro, porta em si as sementes da sua própria negação, de um futuro ainda incerto que pressiona para nascer. O presente é o momento imanentemente negativo que desvanece assim que germina, tornando-se desde já passado e sendo sempre um futuro que estar por vir. Ele é uma flor que negou-conservou o botão de onde nasceu e carrega as sementes do fruto que a sucederá, sendo assim uma trans-imanência, uma imanência que por conter o negativo em-si é devir que transcende a si-mesma.
Estamos total e completamente enraizados no presente sendo impossível observar com neutralidade o passado que é a fonte do próprio presente onde nos enraizamos. Olhamos para o passado a partir do que vivemos no presente e na medida em que alteramos o presente olhamos para o passado de forma diferente e descobrimos nele as causas para essa nova forma de ser presente. É o presente retornando infinitamente a si-mesmo.
A psicoterapia, enquanto processo de reconstrução da história do paciente, é arqueologia do passado que transforma o modo de abordá-lo ao alterar o presente que é causado por este passado, e que por isso causa um novo olhar para o passado que é a causa desse novo presente. Presente e passado são causa e efeito um do outro, e nada existe na causa que não esteja no efeito, assim como não há nada no efeito que não esteja na causa. O que é efeito é uma causa com efeito próprio e o que é primeiro causa é em-si-mesma, efeito e tem uma causa adicional própria. Causa e efeito contém um ao outro sendo inseparáveis. Ao produzir um efeito, a causa torna-se causa sendo por isso causa de si-mesma, logo efeito de si-mesma. O efeito é causa porque somente sua ocorrência faz com que a causa seja uma causa, pois o que define uma causa é a sua capacidade de gerar efeito, logo a causa é efeito porque se faz causa pelo seu efeito. Quando a reciprocidade entre causa e efeito é desfeita o resultado é a má infinitude, a regressão infinita onde qualquer causa é efeito não do seu próprio efeito, mas de alguma outra causa e qualquer efeito é causa não da sua própria causa, mas de algum outro efeito. Explicar qualquer evento em si-mesmo torna-se impossível, pois seus antecedentes causais regridem infinitamente29.
A dialética é assim uma forma sofisticada de tautologia, uma lógica ourobórica, autopoiética, onde o movimento de partida, a causa em que se apoia, e o movimento de chegada, o efeito posterior, retornam infinitamente um sobre o outro, interiorizando um ao outro no conceito (sizígia) que é o alfa e o ômega de todo o movimento, porque ele é esse movimento que interioriza a si-mesmo.
Esse devir é histórico e por isso não chegamos à antítese de uma tese através de uma manipulação lógico-semântica a priori. No tempo intensivo o passado é presente e precisa ser levado em consideração. É a partir da ação da história na linguagem e da linguagem na história que os opostos se engendram. Por ser uma lógica urobórica a circularidade dialética é absoluta e por isso o fechamento do círculo é também sua abertura às contingências históricas. Isso implica que uma tese nem sempre possui apenas uma antítese, e uma mesma tese e uma mesma antítese podem estar unidas de forma diferente dependendo do contexto histórico em que são abordadas30. Aqui a história do psicólogo penetra com toda força, pois a dialética como uma lógica da totalidade necessita incluir a história do psicólogo. O contexto total é a unidade autocontraditória da história de vida do estudioso e da vida histórica do seu objeto de estudo, e só se determina completamente a partir do momento em que se torna objeto de conhecimento. Como cada estudioso é atingido de forma diferente pela história, o contexto se determina de forma diferente dependendo do estudioso que o penetra, e o conhecimento que nasce dessa penetração é absoluto, pois o contexto conhece a si mesmo através do estudioso que o pensa a partir de dentro.
Não basta simplesmente colocar o “não” na frente de um predicado para engendrar uma verdadeira contradição. Se na lógica analítica basta pôr o não em uma proposição afirmativa para construir uma proposição negativa, o mesmo não ocorre na dialética, que é fiel a contingência histórica ao não deduzir a priori uma lista de pólos contrários com suas respectivas sínteses. Dizer que o contrário de A é não-A é por demais indeterminado. Uma coisa é A ou é não-A e assim conjunto A e não-A inclui tudo que existe de forma indeterminada31. Afirmar por exemplo que a psicologia é uma disciplina subjetiva e não-subjetiva é jogá-la na indeterminação, afinal tudo que não é subjetivo estaria incluído na psicologia, podendo ser ela uma disciplina matemática, geológica, anatômica, enfim qualquer coisa. Ao penetrarmos na história da psicologia veremos que a subjetividade e a objetividade estão em luta, uma se afirmando sobre a outra, e assim atingiremos uma verdadeira oposição, onde cada pólo é rico em conteúdos que se negam mutuamente. Aí teremos a chama necessária para a dialética, visto que cada pólo determina-se porque os seus conteúdos negam os conteúdos do pólo rival, e por isso precisa dele para poder se afirmar. Na contradição entre a subjetividade e a objetividade há uma dialética concreta em ação.
Esta unidade que inclui a diferença é a mysterium coniunctionis, a separação e síntese dos compostos que tanto fascinou os alquimistas e Jung depois deles. Esta unidade negativa não é visível ao primeiro olhar. Apenas através da intensidade reflexiva da oposição que constitui a prima matéria, é que ela é revelada-criada. No começo ela é apenas uma onda indeterminada de possibilidades, mas que se coagula numa experiência particular no momento que o estudioso abre todo o seu ser para receber o seu outro. Como o ser total do estudioso está envolvido no processo de conhecer, o conceito contém a identidade negativa do estudioso e do seu outro, sendo assim um conceito subjetivo-objetivo.
Esse processo não é restrito à subjetividade privada do homem, sendo virtualmente presente em qualquer parte do real. Apenas a sensibilidade reflexiva do estudioso dirá se ele está ou não diante de um processo dialético. Qualquer processo só é dialético se incluir a subjetividade do estudioso, pois necessita dele para ser o que é. “O que a natureza deixou incompleta, a arte aperfeiçoa”. Esse dito alquímico transparece que a natureza só é natureza para o homem, visto que ninguém mais tem um conceito de natureza. Mas por ser natureza apenas para o homem, ele é em sua própria natureza contra naturam.
Sem a oposição entre observador e observado não há a tensão necessária para a dialética porque ela é a conservação-negativa dessa oposição. Supor um real em-si incognoscível para o homem é para a dialética um nonsense, visto que o real só é real para o homem e ninguém mais. É através do processo humano de conhecer o real que o real conhece a si-mesmo, pois o real só é para o homem e por isso o inclui. O homem só conhece a si-mesmo conhecendo o real de que faz parte, pois só é homem enquanto parte desse real.

A SIZÍGIA NA OBRA DE JUNG

Um pouco antes de começar a redigir os Tipos Psicológicos, Jung teve um sonho que modificou o modo como planejava concretizar a obra. Sua intenção inicial era escrever o livro de forma clara, lógica e apurada ao estilo de O Discurso do Método de Descartes.Entretanto, ele fracassava ao tentar fazê-lo porque o estilo cartesiano não parecia adequado à imensa riqueza do material que tinha nas mãos.

Quando se defrontou com essa dificuldade, ele sonhou com um enorme barco fora do porto, carregado de maravilhosas mercadorias para a humanidade; o barco devia ser trazido para o porto e as mercadorias distribuídas ao povo. Ligado a esse enorme barco estava um cavalo árabe branco, muito elegante, bonito e delicado. Era um animal arisco e supunha-se que era ele quem ia puxar o barco até o porto. Mas o cavalo era absolutamente incapaz de fazê-lo. Nesse momento um enorme gigante de cabelos e barbas vermelhos atravessou a multidão empurrando todo mundo. Ele pegou um machado, matou o cavalo branco e pegando a corda puxou o barco até o porto, num único élan. Assim Jung percebeu que teria de escrever sob o fogo emocional do que sentia e não se apegar a esse elegante cavalo branco. Daí ele foi levado por um tremendo impulso de trabalho ou emoção e escreveu o livro praticamente de uma só vez, levantando toda manhã às três horas da madrugada32.

A atitude cartesiana de Jung era personificada pelo cavalo árabe branco que por si só era incapaz de levar o barco da sua obra adiante. O sonho compensou essa atitude através de uma outra forma de consciência personificada pelo gigante ruivo cuja matança do cavalo representa o sacrifício do intelecto necessário quando se lida com os produtos do inconsciente. As duas figuras personificam duas formas de consciência, uma emocionalmente bruta e a outra mentalmente refinada. O aparecimento de uma significava a morte da outra, e o sonho poderia ser descrito como um movimento enantiodrômico onde o excesso de lógica cartesiana transforma-se no seu oposto. Mas a lógica cartesiana, matriz do sujeito moderno, é personificada no sonho por um animal, enquanto a emoção bruta é personificada por uma figura humana. O animal possui uma bela e delicada brancura espiritual, enquanto o gigante possui uma brutalidade rubra e animalesca. As imagens negam uma à outra ao mesmo tempo em que partilham uma identidade profunda. Cada uma nega, mas é em sua própria negação a afirmação da identidade com a outra negada.
O fruto do sonho é a obra na qual Jung envolveu-se mais extensamente com a tradição histórica do logos. Quando as chamas emocionais incendiaram o seu pensamento ele pôde assumir a forma implicitamente dialética que conhecemos hoje. O pensamento junguiano não exclui unilateralmente as emoções como o faz a lógica tradicional, mas a conserva em sua própria negação, pois a diferença entre eles é interna a ambos. Essa é a lógica implícita em seus Tipos Psicológicos.
A função pensamento difere da função sensação de forma externa, indiferente, pois elas não se definem mutuamente. Contudo, se penetrarmos na interioridade da função pensamento a fim de determiná-la, de estabelecer sua identidade para descobrir de que modo ela funciona, o que se encontra é uma outra forma de consciência negada. Esse estilo de consciência chamada da função sentimento lida com os conteúdos psíquicos a partir do seu valor afetivo enquanto a função pensamento estabelece conexões a partir de conceitos. Uma complementa a outra ao mesmo tempo em que na sua mais íntima identidade a contradiz. A função pensamento pode atuar a vontade com a função sensação e a função intuição, mas quando se trata da função sentimento as faíscas se acendem, pois ela nega o seu funcionamento. A identidade de cada uma se faz a partir da negação da outra, e exatamente por isso precisa da outra para ser o que é, pois é precisamente a identidade da função sentimento que ao ser negada torna possível a função pensamento, e vice-versa. A lógica é a mesma na relação entre a função intuição e a função sensação33.
O conceito de inconsciente compensatório de Jung é o maior exemplo de como sua psicologia era, implicitamente, dialética. O inconsciente compensa a consciência, sendo em si-mesmo o outro interno a ela. O que para consciência é A, para o inconsciente é B, um conteúdo que nega de forma determinada o conteúdo A. O inconsciente funciona como o mundo invertido da consciência. Se uma pessoa é conscientemente introvertida encontrará o inconsciente fora de si, nos outros externos. Se for conscientemente extrovertida o inconsciente se manifestará através de elementos internos à sua personalidade. Como ninguém é só um o tempo inteiro, o inconsciente é ora externo, ora interno. O próprio conceito de inconsciente coletivo é a inversão do conceito de consciência coletiva. Em um predomina o intelecto pragmático, no outro a imaginação lúdica, um é lógico-racional, o outro é imaginativo-mítico, um se ocupa do progresso científico do presente para o futuro, o outro é inundado por fantasias míticas que remontam a um passado primevo, um só acredita naquilo que vê e pode conhecer, o outro é uma estrutura vazia e incognoscível. Nenhum é por si só a verdade, mas só é na relação com o outro que o nega e por negá-lo o conserva. No fim de sua vida pensando em sua obra como um todo Jung afirmou que ela enfatizava tudo aquilo que havia sido relegado para as margens pela consciência coletiva.

Na opinião de Jung, seu trabalho proporcionava o que faltava no Ocidente. Em outras ocasiões, ele se expressou com mais veemência a respeito de como fora recebido. Em 1958, disse para Aniela Jaffé que a falta de receptividade demonstrada para seu trabalho não era surpresa, pois sua obra era uma compensação. Tinha dito coisas que ninguém queria ouvir. Diante disso, considerava maravilhoso o tanto de sucesso que seu trabalho tinha conseguido obter, e que não poderia ter esperado mais34.

A idéia de oposição está no coração do pensamento de Jung, sendo quase um sinônimo de vida psíquica, visto que para ele os opostos são as inerradicáveis e indispensáveis precondições de toda a vida psíquica. Jung atribui ao filósofo grego Heráclito a paternidade da idéia de oposição complementar.

O velho Heráclito, que era realmente um grande sábio, descobriu a mais fantástica de todas as leis da psicologia: a função reguladora dos contrários. Deu-lhe o nome de enantiodromia (correr em direção contrária), advertindo que um dia tudo reverte em seu contrário35.

Jung trabalhou extensivamente com o conceito heraclitiano de enatiodromia, onde tudo que chega ao seu extremo transforma-se em seu oposto, mas ele não ouviu o que realmente o conceito falava, e temerosamente isolou a psicologia da insana fluidez enantiodrômica. Jung recuou diante do insight que algo é mais extremamente si-mesmo quando é também o seu outro. Ele preferiu se proteger isolando-se desse inquieto si-mesmo na calma paz do meio-termo.

No entanto, se o indivíduo conseguir reconhecer o inconsciente a modo de fator co-determinante, ao lado, do consciente, vivendo do modo mais amplo possível as exigências conscientes e inconscientes (isto é, instintivas), então o centro de gravidade da personalidade total deslocar-se á. Não persistirá no eu, que é apenas centro da consciência, mas passará para um ponto por assim dizer virtual, entre o consciente e o inconsciente: o si-mesmo (Selbst)36.

Neste local estático abstraído de ambos os pólos, ele escapou da dissolução dialética não pagando o preço exigido pela enantiodromia, continuando a pensar os opostos externamente. Mas a enantiodromia diz que quando algo torna-se absolutamente idêntico a si-mesmo, afirmando-se em sua máxima intensidade, nega-se tornando-se o seu oposto. Em termos lógicos isso revela que algo é absolutamente si-mesmo a partir do seu outro. A absoluticidade de algo é a sua relativização não por um outro qualquer, mas pelo outro que algo é. O absoluto é relação, identidade da sua identidade consigo mesmo e da sua diferença. Algo é si-mesmo um outro-em-si , estando mais intimamente dentro de si ao exteriorizar-se como um outro numa exterior-intimidade.
A enantiodromia exige que a consciência não se abstraia, mas seja ela mesma esse movimento onde a intimidade absoluta nega-conserva-se como exterioridade absoluta, como uma extimidade. É isso que os chineses tentavam expressar por meio do Tao. O problema é que enquanto o diagrama Yin-Yang for uma imagem, um conteúdo da consciência, ele ainda será estático. A consciência precisa se dissolver nele deixando-o permeá-la, tornando-se una com ele em seu próprio movimento. Quando isso acontece cada pólo se revela-cria como indivisível por doar-se ao seu outro, visto que sua indivisibilidade é em-si a sua doação, individoação.
Jung afirmava que a psique era o terceiro excluído por conciliar a oposição entre esse in intellectu e esse in re através da sua principal atividade, a fantasia37. Quando ele afirma que a psique cria realidade todo dia e que o nome dessa realidade é fantasia, não precisamos entender que primeiro existe uma realidade concreta, que contém um ser humano, que contém uma psique em seu interior subjetivo, e que entre uma de suas inúmeras atividades está a de transformar fantasia em realidade. Essa abstração extensiva não consegue captar a inter-relação entre fantasia e realidade. Quando a razão abstrata afirma que algo é fantasia, significa que não é realidade, que é uma criação subjetiva. Quando afirma a realidade de algo, nega que esse algo seja uma fantasia, que pertença à esfera subjetiva do homem. Realidade e fantasia são categorias reflexivas, negam uma à outra de forma absoluta, pois negam a outra colocando-a como externa a si. Como são em si-mesmas essa negação da outra, também negam a identidade abstrata de cada uma consigo mesma. Essa dupla negação é o que torna fantasia e realidade a negação absoluta uma da outra, e por isso a afirmação absoluta uma da outra. Psicologia é a consciência da realidade interna à fantasia e da fantasia interna a qualquer realidade.

SIZÍGIA EM AÇÃO

A história recente foi testemunha de uma sizígia cuja tensão pôs o mundo inteiro de sobreaviso diante da ameaça de total e completa destruição nuclear. De um lado os Estados Unidos, autointitulado campeão da liberdade individual, mas cego para sua sombra coletivista, para os movimentos massificantes da cultura pop fabricados por multinacionais que manipulam tão eficientemente os gostos e opiniões pessoais ao ponto de fazerem os indivíduos acreditarem que compram seus produtos de acordo com sua livre e espontânea vontade. Do outro lado estava a União Soviética, autointitulada representante do socialismo comunista, que para poder funcionar esmagava a liberdade individual ao mesmo tempo em que cultuava certos indivíduos escolhidos pelo Partido para representarem a alma coletiva, cujos exemplos mais significativos foram Lênin e Stalin. Ao redor da aura fornecida por eles circulava uma elite que lutava pela abolição da propriedade individual, mas gozava dos privilégios exclusivos daqueles que possuíam grande poder político. Cada metade do par atuava a sombra da outra metade, sua extimidade. O resultado foram décadas de guerra fria e paranóia nuclear.
Um outro exemplo da sizígia provém de uma paciente que procurou atendimento queixando-se de depressão. Ela tinha problemas com um marido agressivo, ciumento e “beberrão” (palavras dela). Certo dia ele havia saído para beber com os amigos e ela adormeceu enquanto o esperava. Ele chegou muito tarde e ela cansada de ser deixada só durante a noite em plena semana enquanto ele saia para beber se irritou e gritou que não agüentava mais a vida que estava levando. Ele estava tão embriagado que não conseguia dizer uma palavra indo dormir no sofá enquanto ela se acalmava. Ela demorou a dormir, estava com tanta raiva que ficou rolando de um lado para o outro escutando os roncos do marido no sofá. Quando dormiu sonhou que acordava durante a noite para fechar a porta da frente da sua casa e de repente encontrava um cachorro preto e furioso que estava no limiar da entrada, rosnando e olhando fixamente para ela. O cão saltou sobre o seu pescoço enforcando-a com suas patas, nesse momento ela despertou. Levantou tão aterrorizada que acordou o marido e pediu para ele ir dormir na cama com ela. Quando ele a abraçou ela se acalmou e conseguiu adormecer.
Mergulhamos nas imagens do sonho. Para ela o cão era o animal mais amigo do homem, mas ela o associou também ao demônio cristão, ao satanás. Relacionou também o animal ao marido que sob determinadas circunstâncias era um bom homem, mas quando bebia ficava agressivo costumando perder o controle. Certo dia ele havia saído para beber e ela cansada de ficar só em casa saiu para casa de uma amiga, quando chegou ele estava bêbado e possesso de raiva perguntando onde ela havia ido, não aceitando qualquer argumento dela e no calor da discussão bateu nela. No outro dia ele chorou arrependido, desculpou-se e pediu para ela nunca discutir enquanto ele estivesse bêbado, pois ele perdia a cabeça. Ela sentia-se protegida ao seu lado, mas ao mesmo tempo tinha medo do seu ciúme. Quando saiam juntos para as festas era só para brigarem. Ele ficava desconfiado e se ela olhava para baixo ficava perguntando se não estava gostando e no que estava pensando. Se ela olhava para o lado ficava perguntando para quem estava olhando. Ela achava que ele a traía, ele era um cachorro, podia sair a hora que quisesse, mas não deixava ela fazer o mesmo. Mesmo sendo tratada como um cão sarnento ela não sentia vontade de traí-lo. Ela costumava acordar com dores no pescoço, ele a sufocava. A situação não era novidade para ela, pois sua infância desenrolou-se na convivência com uma mãe constantemente irritada, que costumava descarregar nela suas frustrações por meio de críticas ácidas. Na juventude quase não saia de casa, pois a mãe a prendia e vigiava o tempo inteiro. Encoleirada em casa sentia-se triste e só por não poder se divertir como as garotas da sua idade. Apesar e odiar a situação em que se encontrava sua carência a impedia de separar-se. Quando ficava só sentia-se como um cão sem dono. Não sabia o que fazer para mudar, senti-se desorientada, cega, perdida.
O sonho personificava a diferença interna entre as qualidades com as quais ela se identificava e aquelas que precisava excluir para ser o que era. A mãe e o marido encarnavam para ela a agressividade com a qual não conseguia lidar. A raiva era um excesso para sua forma calma e tranqüila de estar no mundo e por isso precisava ser excluída. Mas o interior mais íntimo é o outro de si-mesmo, exteriorizando-se para ser vivido no mundo e por isso sempre se encontra algo ou alguém para encarnar essa exterior intimidade. No caso da paciente era o marido que atuava o não-ser do seu ser. Ele refletia aquilo que lhe era mais externo e exatamente por isso também mais interno. Ele a agredia e também a protegia, sobretudo de encarar qualidades que lhe eram tão íntimas, mas também estranhamente assustadoras. Cada par do relacionamento encenava uma polaridade, e enquanto a extimidade dela fosse literalmente atuada por ele, ela continuaria petrificada no papel de vítima e ele no de agressor.
O movimento realizado aqui não é um trânsito horizontal entre uma multiplicidade de perspectivas. Não há um mercado psicológico cujas prateleiras oferecem múltiplas formas de estar no mundo para que se escolha aquela que agrade. Não há saída horizontal para fora da neurose, e procura-la é o melhor modo de continuar preso nela. A única saída é interna, o que exige um movimento vertical de aprofundamento nos conteúdos por ela apresentados.

Não se deveria procurar saber como liquidar uma neurose, mas informar-se sobre o que ela significa, o que ela ensina, qual sua finalidade e sentido. Deveríamos aprender a ser-lhes gratos, caso contrário teremos um desencontro com ela e teremos perdido a oportunidade de conhecer quem somos. Uma neurose estará realmente “liquidada” quando tiver liquidado a falsa atitude o eu. Não é ela que é curada, mas é ela que nos cura. A pessoa está doente e a doença é uma tentativa da natureza de curá-la. Por isso podemos aprender muita coisa da doença para a nossa saúde e que aquilo que parece ao neurótico absolutamente dispensável, contém precisamente o verdadeiro ouro que não encontramos em outra parte38.

A cura estava na própria ferida, nas constantes brigas e discussões que a enraiveciam tanto que algumas vezes ela chegava a explodir em fúria. Quando o sangue esfriava não se reconhecia, chegando a sentir-se culpada por ter ficado tão possessa. O processo terapêutico penetrou nas situações nas quais ela saiu de si, possuída por uma raiva que lhe era tão estranha e ao mesmo tempo a acompanhou durante toda a sua vida. O que exatamente ela sentia? Onde sentia? Em quais partes do seu corpo sentia o seu sangue ferver? O que ela sentia-se impelida a verbalizar quando ficava possessa? Por que ela sentia-se tão culpada? Ela estava tão identificada com sua posição de vítima que enxergava a si-mesma em sofrimento quando explodia de raiva com alguém. Por que manter uma fidelidade tão canina à sua posição de vítima? Essas perguntas trouxeram a tona o medo do desconhecido, muito maior do que o medo de uma situação que apesar de lhe causar sofrimento, já era uma velha conhecida sua. O cão lhe causava medo, mas por ser algo puramente externo era mais fácil de lidar do que aventurar-se na independência. No decorrer do processo a imagem do sonho se liquefez numa forma de consciência no qual passividade e agressividade não mais se excluíam unilateralmente, mas incluíam uma à outra. Desidentificar-se com uma determinada forma de ser só é possível a partir da identificação consciente com as qualidades por ela excluídas. Assim a consciência não precisa mais manter-se isolada da sua antítese. Como uma não era mais excluída da outra, não atuavam mais tão cegamente, visto que eram agora refletidas uma na outra como a verdade mais íntima uma da outra. A consciência circulava entre os opostos, a calma tranquila não era mais tão ameaçada por sua contraparte violenta e agressiva, e a agressividade canina trouxe o impulso necessário para uma existência menos encoleirada. Não se trata de encontrar o meio-termo, um equilíbrio estático que permanece igualmente distanciado de cada pólo, mas de um equilíbrio dinâmico, um movimento constante e contínuo, no qual cada pólo flui no outro. A dialética é devir eterno, e lidar com os opostos é o trabalho de uma vida na medida em que cada vida singular existe como o contínuo re-solver da sizígia.
O sintoma neurótico é uma formação de compromisso entre as polaridades. Ele é um outro-em-si, uma ferida que contém as sementes da cura. Essas sementes brotam a partir da aquosidade interna ao próprio sintoma. Ele é produto da lógica extensiva que permite ao ego proteger-se da extimidade ao excluir um pólo do outro. Mas aquilo que é recalcado sempre retorna, seja a partir dos aspectos internos da personalidade ou a partir de elementos externos. A psicologia do ego costuma neurotizar a interiorização ao tomá-la como o recolhimento de um conteúdo externo para dentro da personalidade. Tal concepção supõe a possibilidade de um mundo objetivo, completamente externo à subjetividade. Esse movimento não é vertical, mas horizontal, ocorrendo no espaço extensivo onde interno e externo excluem-se. Hoje, mesmo a mais materialista das ciências, a física, admite que quando se atinge o interior daquilo que é mais objetivo, a matéria, não existe mais neutralidade científica. Os fenômenos subatômicos refletem a perspectiva adotada pelo observador, e não há outro modo de encarar o mundo além da posição que assumimos diante dele. Interiorizar a projeção não é reverter unilateralmente o seu movimento, mas interiorizar-se naquilo que ela apresenta. No caso da paciente é a abertura da sua essência para aquilo que confronta o seu modo de ser.
Essa tarefa não pode ser delegada apenas para os pacientes. Muitos psicólogos preferem esconder-se atrás das barreiras supostamente objetivas fornecidas por suas teorias, tentando escapar do aspecto dialético da subjetividade. No entanto, ela insiste em transferir-se para o interior do psicólogo, que tenta a todo custo manter-se imune a ela. Como o psicólogo responde a esse processo? Ou ele não toma consciência dele e prossegue muitas vezes atuando-o inconscientemente, ou ele o reconhece e teoriza sobre ele, alertando sua importância para a prática. O reconhecimento da plena realidade desse fenômeno, cuja essência é a transgressão do espaço extensivo, não ocorre se o psicólogo frustrar o próprio movimento analisando-o de forma abstrata, como uma projeção do mundo interno do paciente sobre o seu mundo interno e que por isso precisa retornar ao seu local de origem. O movimento no qual a interioridade do paciente não pertence apenas a ele mesmo e a interioridade do psicólogo também não, tem seu reconhecimento frustrado no momento em que o terapeuta o interpreta como a projeção de algo que sai de um interior subjetivo abstrato para outro interior subjetivo abstrato. Assim o esse in anima, o estar imerso na alma, não tem sua realidade reconhecida nem mesmo na prática psicológica, visto que paciente e psicólogo continuam tendo o seu ser aprisionado dentro de si mesmos. A psique é então privada da sua essência, que é estar mais dentro de si-mesma quanto mais está mais fora de si-mesma, imersa no mundo, porque a psique não é uma coisa, não possui propriedades espaciais. Seu interior é relação.
Não há escapatória desse processo, e o melhor que se pode fazer é dar-lhe a devida atenção visto ser ele uma valiosa fonte de informação. Em alguns momentos eu sentia raiva da paciente por ela continuar presa naquela situação, outras vezes sentia raiva de mim por não poder ajudá-la, enquanto outras vezes sentia raiva do marido por tratá-la daquele modo. Tinha fantasias de que a psicoterapia lhe daria o continente materno necessário para superar a sua depressão. Em certos momentos sentia-me cego, perdido, triste por não saber o que fazer para ajudá-la. Em outros momentos a interpretação que eu fazia do seu material soavam para ela como uma crítica a sua pessoa, enquanto eu me imaginava como um guia para o mundo interior, como se ela não conseguisse enxergar com seus próprios olhos e precisasse de um cão para guiá-la. Como eu poderia pedir que ela penetrasse no material que emergia nas sessões e não fazer o mesmo? É hipocrisia exigir isso dos pacientes e permanecer imune às contaminações psicológicas que ocorrem no encontro. A psicologia não é ciência, mas com-ciência39, e o psicólogo não é um cientista neutro, mas é em relação e isso inclui aquilo que ele está sendo no momento do atendimento.
A psicológica é a dialética éxtima, trans-imanente a qualquer fenômeno. É uma análise-sintetizante, um eros-lógico, uma teoria-prática. E a psique é a verdade interna a todo e qualquer ser, e sendo um outro-em-si, só é ela mesma quando refletida no seu outro-si-mesmo, o logos. E isso é psicologia, a unidade da unidade e da diferença de psique e logos.



andre.mercurio@hotmail.com


NOTAS

Trecho do livro PSICOLOGIA DIALÉTICA: UMA CRÍTICA INTERNA À PSICOLOGIA JUNGUIANA, escrito pelo autor e disponível em http://clubedeautores.com.br/book/3630--Psicologia_Dialetica
1.HILLMAN.J, Psicologia Arquetípica. São Paulo: Cultrix, 1995.
2.HILLMAN.J,O Livro do Puer. São Paulo: Paulus,1998.
3.HILLMAN.J, Anima. São Paulo: Cultrix, 1995.
4.JUNG.CG, Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, Obras Completas Vol IX/1. Petrópolis: Editora Vozes, 2000.
5.HILLMAN.J, Anima.
6.JUNG.CG, ibid, p.81.
7.HILLMAN.J,ibid.
8.HILLMAN.J,ibid.
9. HILLMAN.J,ibid.
10.JUNG.CG, Ab- reação, Análise dos sonhos, Transferência. Obras Completas Vol XIV/2. Petrópolis: Editora Vozes,1987.
11.JUNG.CG, Mysterium Coniunctionis, Obras Completas Vol XIV/1. Petrópolis: Editora Vozes, 1985.
12.HILLMAN.J,ibid.
13.HILLMAN.J,ibid. p.191.
14. HILLMAN.J,ibid, p.187.
15. Existência no sentido de aparecer, de manifestar-se, de ser efetivo, seja material, mental, ou emocionalmente.
16.HILLMAN.J, Re-Imaginar la Psicologia. Madrid: Siruela, 1999.
17.HEGEL.GW,The Science of Logic. Disponível em http://www.marxists.org/reference/archive/hegel/hl_index.htm.
18.GIEGERICH.W, The Neurosis of Psychology. New Orleans: Spring Journal Books, 2005.
19.HILLMAN.J, Entre Vistas.p.65. São Paulo: Summus, 1989.
20.GIEGERICH.W, MILLER.D, MOGENSON.G Dialectics & Analytical Psychology. New Orleans: Spring Journal Book, 2005.
21. JUNG.CG, Cartas Volume II.pp.334, 335. Petrópolis: Editora Vozes, 2002.
22.BERNARDI.C, Individoação:do Eu ao Outro, Eticamente. Disponível em http://www.rubedo.psc.br/artigosb/jgetiind.htm.
23.CIRNE-LIMA.C, Dialética para Principiantes. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 2002.
24.CIRNE-LIMA.C,ibid.
25.CIRNE-LIMA.C,ibid.
26.CIRNE-LIMA.C,ibid.
27.CIRNE-LIMA.C,ibid.
28.Segundo a teoria da complexidade caos e ordem pertencem um no outro, visto que toda ordem oculta em-si uma desordem, e todo caos contém uma ordem não percebida de imediato.
29.HEGEL.GW,ibid.
30.CIRNE-LIMA.C,ibid.
31.CIRNE-LIMA.C,ibid.
32.VON-FRANZ.ML, A Sombra e o Mal nos Contos de Fadas.São Paulo: Edições Paulinas, 1985.
33.JUNG.CG, Tipos Psicológicos.Rio de Janeiro: Editora Guanabara,1987.
34.SHAMDASANI.S, Jung e a Construção da Psicologia Moderna. p.375 São Paulo: Idéias & Letras , 2005.
35.JUNG.CG, Estudos Sobre Psicologia Analítica,Obras Completas Vol VII.p.64-65. Petrópolis: Editora Vozes,1981.
36. JUNG.CG & R.WILHELM, O Segredo da Flor de Ouro. p.59. Petrópolis: Editora Vozes,1984.
37. JUNG.CG, Tipos Psicológicos.
38. JUNG.CG, Civilização em Transição, Obras Completas Vol X/3.pp.160-161. Petrópolis: Editora Vozes, 1993.
39.A palavra consciência deriva de con ou cum, que significa “com” ou “juntamente com”, e scire, “saber”. O termo porta então o sentido de “conhecer com” um “outro”. A palavra ciência deriva apenas de scire, que porta o sentido de saber sem o estar junto. Ver EDINGER.E, A Criação da Consciência. São Paulo: Cultrix, 1993.