Obs: Os números que se vêem ao longo do texto correspondem às notas.
ESPÍRITO NA SIZÍGIA
ANDRÉ DANTAS
A psicologia arquetípica surgiu no cenário junguiano combatendo ferozmente a ênfase dada pelos junguianos tradicionais à unidade psíquica representada pelo arquétipo do si-mesmo. A importância que Jung deu ao arquétipo do si-mesmo é vista por Hillman como a subjugação da multiplicidade psíquica pelo monoteísmo que enxerga os fenômenos a partir de um ponto de vista único. Para Hillman, os junguianos clássicos confundem a psicologia com uma disciplina do espírito. A concentração no si-mesmo é a vitória do monoteísmo sobre o politeísmo, do uno sobre o múltiplo, do espírito sobre a alma. O trabalho psicológico requer multiplicidade, pois a psique é composta por uma multidão de complexos exigindo uma perspectiva politeísta capaz de fazer jus à sua complexidade. Quando o si-mesmo assume um grau demasiado de importância o espírito domina a alma. O modo como o processo de individuação é tradicionalmente descrito, é o sintoma de uma psicologia aprisionada na linguagem do espírito. Alma, e não o si-mesmo, é o foco da psicologia, e a individuação seria mais bem entendida não como a realização do si-mesmo, mas como o trabalho de cultivo da alma.
Na psicologia arquetípica a alma é uma perspectiva, um modo de olhar os fenômenos e não algo que está objetivamente neles, um movimento e não uma substância. Alma deriva do grego psyché, que no latim foi traduzido por anima, sendo o ponto de vista da interioridade em qualquer lugar e não apenas da interioridade humana. Trata-se de uma perspectiva que converte os eventos em experiências, um espaço intermediário entre a mente e o corpo, entre a reflexão e a ação. Não vemos a alma, mas vemos através dela, e o olhar da alma permite ver as suposições implícitas em qualquer afirmação, desliteralizando-a. Tentar definir a alma é um problema filosófico que deve ser visto acima de tudo como um fenômeno psicológico que brota do próprio desejo da alma por autoconhecimento. Esse desejo é melhor satisfeito através daquilo que é intrínseco a sua constituição: imagens. Psicologia enquanto logos da alma é um discurso imagético, metafórico, uma expressão da base poética constitutiva da mente1.
Para Hillman o engajamento com a alma não deve ser confundido com uma disciplina espiritual. Enquanto imaginar é a atividade básica da alma, a posição do espírito é cega para fantasia acreditando que suas afirmações são literalmente reais. Teologia, metafísica e objetividade científica são as atividades por excelência do espírito visto que são incapazes de enxergar através das suas exigências de verdade, ordem, estabilidade, claridade e distanciamento. A diferença entre as duas posições é descrita por Hillman por meio de uma metáfora geográfica. Enquanto o espírito situa-se nos picos mais altos, a alma encontra-se nos vales mais profundos. O primeiro ascende às alturas abstraindo-se das paixões em busca da unidade e da solidão, enquanto a segunda aprofunda-se no vale das paixões necessitando de envolvimento, eros e comunidade. A linguagem do espírito é literalmente objetiva enquanto a da alma é imaginalmente metafórica. Três qualidades fundamentais diferenciam o cultivo da alma das disciplinas do espírito: 1) Interesse pela patologia, pelas paixões que impulsionam a psique. 2) Lealdade ao humor nebulosamente aquático da anima, com suas confusões e personificações. 3) Compromisso sincero com a discórdia cacofônica do politeísmo, sua fragmentação e multiplicidade. Essas diferenças impedem que o cultivo da alma seja confundido com as disciplinas espirituais, sejam elas filosóficas, teológicas, científicas ou meditativas2.
Mas no capítulo final de um estudo sobre a anima, Hillman opera uma reviravolta no seu pensamento afirmando que o envolvimento com a alma implica um mútuo envolvimento com o espírito. A anima está sempre acompanhada e sua essência só pode ser captada em um contraste3. Esse insigth remonta a Jung que afirmava que aquele que desconhecesse o significado e alcance universal do motivo da sizígia dificilmente poderia opinar acerca do conceito de anima4. Seus últimos trabalhos abordam a anima principalmente através da sua conjunção com o animus. Como a anima manifesta-se sempre acompanhada do animus, qualquer afirmação sobre ela é, mesmo que apenas implicitamente, uma afirmação sobre o animus e por isso a melhor posição para se enxergar qualquer um é o outro deles. Não se pode ter um sem o outro, e por isso todo estudo sobre a anima é também um estudo sobre o animus, quer se esteja consciente ou não. A noção de sizígia exige que qualquer exame profundo da anima explore em igual profundidade o animus e não se faz melhor justiça à anima do que dedicar tempo e atenção ao animus5.
Masculino e feminino tem sido tradicionalmente o modo como a sizígia tem sido abordada pela psicologia junguiana. Mas Jung sugere que a personificação feminina assumida pela anima pode não lhe ser assim tão essencial.
Na projeção, a anima sempre assume uma forma feminina, com determinadas características. Esta constatação empírica não significa no entanto que o arquétipo em si seja constituído da mesma forma. A sizígia masculino-feminino é apenas um dos possíveis pares de opostos, mas na prática um dos mais importantes e freqüentes. Ela tem muitas relações com outros pares (de opostos) que não apresentam diferenças sexuais, podendo pois ser colocados numa categoria sexual apenas de modo forçado6.
Pensar em termos de gênero inevitavelmente leva a sizígia para dentro do relacionamento homem-mulher, e à concepção de que a anima é exclusiva dos homens e o animus das mulheres. Se for esse o caso então o único modo deles se encontrarem é na relação homem-mulher. Mas os arquétipos são transpessoais, não podendo ser confinados em gêneros ou em etapas específicas da vida. Anima não é propriedade privada dos homens assim como o animus não é das mulheres. A sizígia não ocorre somente nas relações interpessoais, mas também dentro de cada um de nós. Homens também agem guiados pelo animus e as mulheres não são imunes à ação da anima. Isso tem levado muitos psicólogos a malabarismos contorcionistas ao tentar explicar essa dinâmica cotidiana em termos de anima do pai ou animus da mãe. Tais peripécias falham porque não levam em consideração o ponto mais elementar da relação dos dois, a projeção interior. Projeções ocorrem não apenas fora, no mundo exterior, mas também entre partes da psique. Somente com a interiorização da projeção é possível reconhecê-la como uma atividade que acontece às cegas entre anima e animus interiores7.
Em qualquer imaginar da anima seja ele produtivo, lascivo ou malicioso, o espírito animus pode surgir e criticar, e é essa a origem do espírito crítico, aquela parte da psique que se distancia, abstrai, compara e também pode menosprezar. Este animus está a serviço da alma realizando a separatio que distancia a mente do humor. Como o animus está ligado a anima, o espírito crítico conserva traços do humor subjetivo negado sob a forma de um humor objetivado em opiniões. O espírito objetivo que é a meta de toda a jornada intelectual ocidental é o esforço da alma para libertar-se por meio do animus do vale das suas paixões8.
Quando se pensa ter captado algo da anima em uma imagem, humor ou projeção, a questão que se segue imediatamente é onde se encontra o animus? Ele provavelmente está no próprio ego que percebe, e que antes de tudo possibilita a observação. A observação de um se dá através do outro, o que significa que a observação também é uma forma de projeção, pois a própria perspectiva assumida define aquilo que é possível perceber. Na medida em que a anima representa a interioridade, a fantasia, a função reflexiva, as conexões e o pessoal, o animus deve aparecer na exterioridade, nas atividades, de forma impessoal, objetiva e literal9.
Em sua origem latina a anima aparece como o substantivo respiração enquanto o animus era a atividade de respirar, sendo sinônimo da alma racional cujas qualidades são as funções e ações da consciência como atenção, intelecto, mente, vontade, coragem, arrogância e orgulho, tudo que hoje se atribui ao ego. Se muito do que a psicologia tem chamado de ego refere-se ao animus na sizígia, então aquilo que está por trás do ego é o animus. O ego é uma idéia do animus, o resultado do animus que se dissociou da sua conexão com a anima colocando-se como independente da sizígia. A consciência da anima ou de animus implica o reconhecimento do estilo de inconsciência em qualquer constelação específica, uma inconsciência determinada pelo seu outro lado arquetípico. A identificação da personalidade egóica consciente com qualquer uma das figuras da sizígia é o papel arquetípico que o ego é constrangido a representar, pois a constelação de ambos só se dá com a intervenção da personalidade consciente10. Como os dois estão sempre juntos, a intervenção da personalidade consciente é na verdade a atuação de uma das metades. Tal dinâmica é quase irreconhecível porque a personalidade consciente é o ponto mais iluminado e exatamente por isso também o mais sombrio. Jung, no seu estudo sobre a sizígia percebeu que o sol, a imagem alquímica da consciência, é em si um corpo escuro, luz por fora e escuridão por dentro e por isso o ego, seu representante contemporâneo, seria uma personificação relativamente constante do próprio inconsciente, uma fonte de luz onde há escuridão suficiente para um sem número de projeções11. É a constância dessa personificação que torna as decisões e atitudes do ego tão compactas e opacas ao outro inconsciente. Impedido de enxergar o outro e de se enxergar através do outro a consciência egóica acredita-se literalmente real12.
Esse in anima leva sempre a uma infusão com o animus e a fenomenologia aérea da alma transparece sua relação com o espírito pneumático. Estar na alma é também esse in animus, pois sempre que se toca a alma o espírito também vibra. Devido à sizígia a psicologia não pode excluir o espírito do seu campo de atuação, de modo que as idéias tornam-se experiências psicológicas e experiências convertem-se em idéias psicológicas. Ser psicológico é ser também espiritual, pois psicologia é a interpenetração de psique e logos, onde a imaginação ilumina-se com intelecto que por sua vez refresca-se com fantasia. Isso exige que o espírito e alma mantenham-se diferenciados (a demanda do espírito) e conectados (a demanda da alma). “Considerar cada posição em termos de sizígia reflete uma consciência hermafrodita, na qual o Um e o Outro co-habitam, a priori, todo o tempo; uma duplicidade hermética e um acasalamento afrodítico ocorrendo em cada evento”13.
Hillman espera atender as demandas de separação e conexão através da imaginação mítica que os personifica num tandem.
Imaginar em pares e casais é pensar mitologicamente. O pensamento mítico conecta os pares em tandens,em vez e separá-los em opostos, que é o modo da filosofia. Opostos prestam-se a pouquíssimos tipos de descrição: contraditórios, contrários, complementares, negações - formal e lógico. Tandens, por sua vez, como irmãos, inimigos, negociantes ou amantes apresentam infinita variedade de estilos. Tandens favorecem o intercurso – em inúmeras posições. A oposição é apenas um dos vários modos de se estar num tandem14.
Mas isso faz jus às necessidades do animus? Imaginar a sizígia em tandens mitopoéticos sacia as demandas da anima, pois mito, metáfora e fantasia estão para a anima como a água está para o peixe. Serão eles os meios adequados para expressão do espírito? Apesar do fantástico insight a respeito da sizígia, ele não provocou nenhuma alteração no modo de expressão da psicologia arquetípica. A sizígia foi mantida a distância da teoria e seu poder explosivo permaneceu encapsulado. Mesmo que a metáfora raiz da psicologia tenha se revelado como a outra face de um dos seus inimigos mais combatidos, nenhuma mudança real aconteceu, e o animus continuou exteriorizado. A psicologia arquetípica continuou uma atividade da imaginação e o espírito foi reduzido ao imaginar da anima. Há alguma mudança aqui? Personificar o espírito difere de alguma forma daquilo que a psicologia arquetípica vinha fazendo até então?
É ingenuidade abrir as portas para o animus e esperar que ele não desembainhe sua espada realizando cortes lógicos no coração das imagens, clareando suas contradições implícitas. É ingênuo acreditar que a anima poderia permanecer virginalmente intacta e continuar imaginando e re-imaginado a realidade sem ser calcinada pela clareza flamejante do animus. É mais ingenuidade ainda acreditar que o animus poderia se conformar em esculpir e admirar imagens sem exercer sua iconoclastia, realizando aquela que é a sua atividade por excelência, o trabalho do conceito.
Sendo a sizígia a revelação de que não se pode ter alma sem espírito, então ela não pode permanecer como um conteúdo ao lado de outros na práxis arquetípica, pois a alma é um modo de abordar todo e qualquer conteúdo como metáforas do fazer alma. Se o espírito for realmente interiorizado seu modo de atuação deve permear todo o estilo arquetípico de lidar com os fenômenos. Mas a psicologia arquetípica continuou posicionada unilateralmente na fantasia mitopética. Caso Hillman tivesse lido aquilo que ele próprio escreveu, a psicologia arquetípica teria interiorizado a sizígia em sua própria forma de estar no mundo tornando-se uma real psico-logia.No entanto, Hillman continuou ofuscado pelas fantasias da anima e não enxergou aquilo que estava bem na sua frente. A linguagem do animus na sizígia é exatamente a filosofia dos opostos complementares e suas descrições lógicas através da negação e da contradição. O problema é que o logos abordado por Hillman ainda não sofreu o influxo da sizígia, e por isso a sizígia continuou imune à ação da lógica. O logos permanece sinônimo da lógica analítico-formal dedicada às regras do correto pensar que trata a fantasia como um absurdo. Essa é a lógica atacada por Hillman e por Jung, mas ela não é a única possível, havendo uma longa corrente filosófica, cujos elos atravessam séculos de história, que se dedicou a uma lógica capaz de expressar a sizígia em sua plena potência. Nesse estilo de filosofia a unidade dos opostos é tematizada não em uma linguagem mitopoética, mas a partir da razão lógica do conceito. Jung resgatou a alquimia em busca das raízes históricas da sua psicologia, todavia a realização da sizígia requer também a busca de uma tradição histórica capaz de fornecer um logos fiel à plasticidade aquosa da coniunctio. Logo a realização da sizígia demanda um profundo envolvimento com a tradição dialética.
O envolvimento com a dialética leva a um problema lógico no modo como a sizígia é apresentada por Hillman. Ele coloca lado a lado oposições e personificações míticas, afirmando que a contradição é uma das muitas formas de se estar num tandem. Eu diria que ao invés de serem vizinhos a oposição está dentro do tandem, sendo aquilo que faz dele uma real sizígia. Oposições lógicas não podem ser colocadas lado a lado com as imagens como se a diferença entre elas fosse similar à diferença entre múltiplos tons de cores. Não há uma simples continuidade no caminho que vai de uma para outra, e a maneira como Hillman as trata faz delas indiferentes à sua diferença, à ruptura, à descontinuidade que há entre ambas. Isso demonstra que a sizígia realmente não aconteceu, pois o pensamento que a pensa continua preso na extensividade espaço-temporal. Nessa concepção um ente primeiro manifesta-se e só então entra em relação, porque o que ele é em si-mesmo independe da relação em que ele se encontra, sendo ela secundária, uma mera adição a sua forma de ser. A relação é apenas uma dentre as múltiplas coisas que lhe acontecem, algo contingente, arbitrário, um acidente externo ao seu ser. Isso se dá porque tanto a imaginação como a lógica formal lidam com seus conteúdos como entidades extensas, partículas que se juntam ou se separam, mas que por mais próximas que estejam nunca estão realmente unidas, apenas agregadas umas as outras.
A psicologia arquetípica resgatou Dionísio das profundezas da imaginação mítica, todavia ele permaneceu como um conteúdo da imaginação, restrito às intensidades somático-emocionais e impedido de permear a própria lógica do seu pensamento, regido pelo mesmo distanciamento apolíneo que acredita combater. Como personificar é intrínseco a imaginação, ficar nela significa continuar vítima da lógica extensiva, onde duas coisas não podem ocupar o mesmo lugar no espaço. A imaginação não consegue personificar o espaço por ele ser anterior a toda e qualquer personificação, sendo a própria condição para a atividade de personificar. A personificação é o próprio ato de conservar a concepção extensiva visto que um ser personificado é um ser com propriedades espaciais, mesmo que metafóricas.
A lógica formal e a psicologia arquetípica compartilham a mesma concepção sólida de realidade, o que muda é o modo como cada uma apresenta os seus conteúdos, uma de forma clara e racional enquanto a outra numa forma poética e imaginal. Para ambas uma relação é como uma roupa que pode ser colocada ou tirada sem maiores problemas, pois aquilo que está em relação é imune à relação em que se encontra. Hillman estava certo ao afirmar que o espírito estava junto da alma o tempo todo realizando a separatio, abstraindo, fragmentando. Personificar não desfaz a abstração, apenas a maqueia com mitopoesia. Se a psicologia arquetípica deseja ser realmente uma psicologia da interioridade ela precisa conscientizar-se que interiormente é governada pelas mesmas leis extensivo-abstratas vigentes no território egóico. Uma psicologia informada pela sizígia necessita de uma lógica onde a identidade não seja sinônima de dissociação e a diferença não seja indiferente ao que diferencia, em suma exige dialética.
DIALÉTICA NA SIZÍGIA
A dialética é a lógica da interioridade (psico-lógica), virtualmente interna a todo e qualquer fenômeno, inclusive aqueles que se manifestam como amizade, negócios, amor ou irmandade. Nessa lógica a essência, aquilo que algo é, define-se em uma relação, que é o modo primordial como qualquer coisa existe. Se para o existencialismo a existência precede a essência, na dialética a essência de qualquer ser é existir, na medida em que existir é estar em relação15. Se a forma primária de manifestação é a relação, isso quer dizer que a relação é essencial ao que algo é, ou melhor é aquilo que algo é, a sua essência mais íntima. A identidade de algo não lhe é simplesmente interior e também não é exterior. A identidade é um interior exteriorizado e um exterior interiorizado, ou seja, é uma exteriorização interiorizante e uma interiorização exteriorizante, e por isso não é fixa, mas está sendo definida sempre por meio dos contextos dos quais participa.
Um exemplo é o hieros gamos de Zeus e Hera. Para Hera, Zeus deveria ser marido e legislador, contudo seus impulsos criativos explodem de forma promíscua, apropriando-se anarquicamente daquilo que deseja, desestabilizando interiormente a família e a sociedade, as esferas de poder de Hera, que para Zeus aprisionam a fantasia procriativa da sua imaginação em liberdade, intensamente dedicada a gerar novas formas de vida16. Esse mesmo deus exibe uma face bem diferente no mito de Prometeu, onde ele não dissemina, mas ciumentamente guarda para si as chamas criativas. Prometeu não é Hera e por isso Zeus manifesta-se com atributos contrários aos exibidos em seu casamento. Sua essência é aquilo que ele está sendo em relação.
A sizígia não é sinônima de relação pura e simplesmente. Uma relação de amor, de negócios, de amizade, de irmandade, de ódio é sizígia quando os seres que estão em relação e a relação em que os seres estão determinam-se mutuamente. Sizígia é uma relação interna, um interior relacional. Sizígia é um nome mítico para o que em filosofia foi denominada dialética. Relações externas não afetam os seres em relação, já que entre eles reina uma diferença indiferente aquilo que cada um está sendo. A palavra chave aqui é oposição, já que afirmar que um ser se opõe ao outro implica que os dois não são apenas diferentes, mas que também comungam, caso contrário não se oporiam. Na oposição a identidade não recai fora da diferença, mas a determina e é por ela determinada17.
Fenômenos complexos exibem múltiplas determinações, logo múltiplas oposições. Dependendo do contexto algumas se manifestam enquanto outras permanecem latentes. A oposição ocorre entre os predicados, entre as qualidades que determinam o que algo é. A lógica extensiva abstrai o sujeito dos predicados que o determinam. De um lado o sujeito, do outro os predicados que o qualificam e entre ambos a indiferença. Essa concepção estabiliza o ego como sujeito e todo o resto como objeto da sua vontade. O ego não é apenas um conteúdo, um complexo, ou uma região psíquica. Reduzi-lo somente a isso é continuar aprisionado em seu território extensivo. Ego é toda forma de pensamento que abstrai um ente das suas qualidades, que toma sua existência como primária e os predicados que o definem como secundários18. Ego é o modo abstrato de conceber a realidade como um aglomerado de partículas extensivas indiferentes à suas relações, aos processos que realizam, e a psicologia arquetípica com sua insistência unilateral na imaginação mitopoética continua acorrentada a essa concepção de mundo.
Claro, eu penso conceitualmente ... Somos pessoas modernas e civilizadas e precisamos de nossos conceitos. Certamente, não quero com isso jogar fora toda a linguagem conceitual, mas, genericamente falando, é na linguagem conceitual que estamos presos, onde estamos no ego, onde as coisas estão mortas, onde retornamos ao que está feito e acabado e onde as imagens não podem nos alcançar19.
A imaginação é colocada de um lado e o pensamento conceitual do outro, cada um na ponta de uma linha, e a lógica linear que dissocia os dois continua intacta. A psicologia arquetípica já reflete acerca das imagens e por isso já está comprometida com o pensamento, mas por refletir diretamente apenas sobre as imagens ainda as pensa a partir da extensividade intrínseca à lógica formal que acredita atacar. Ela combate o pensamento abstrato personificando-o através da imaginação, mas o movimento é unidirecional. Isso não quer dizer que não haja retorno, ele acontece sutilmente com a imaginação dissociando os conteúdos uns dos outros, encarcerando-os na sua forma extensiva ao personificá-los, exteriorizando-os das relações que participam. Pensar as imagens não significa apenas personificar o pensamento lógico, tomando-o como um trabalho de Apolo ou do senex. Isso é apenas metade de um movimento que para completar-se exige a despersonificação espaço-temporal através da interiorização das imagens nos seus atributos. A extractio da essência ocorre por meio da mortificatio da aparência. Não se trata de uma morte unilateral, mas da coniunctio da essência e da aparência dentro da sua própria separação. A re-união das qualidades determinantes de uma imagem com as relações em que ela aparece. Sua identidade é a sua fenomenologia se a relação é o seu aparecer. A lógica dialética é o ato de dobrar a linha explicitando a identidade-na-diferença entre as duas pontas.
Enquanto restringir-se a imaginação, a psicologia atuará inconscientemente (acting-out) a lógica extensivo-abstrata governada pela exclusão. Ou picos ou vales. Essas imagens estáticas da geografia imaginal dissociam alma e espírito coagulando-os em espaços mutuamente excludentes20. A diferenciação de ambos é de extrema importância, mas é apenas a primeira metade da obra. Completá-la exige a solutio desses coágulos imaginais e a coniunctio de picos e vales. A psicológica assemelhar-se-ia aos antigos rios míticos que descem do alto do céu em direção a terra, fluindo para o mundo subterrâneo e reascendendo para derramar-se novamente das mais elevadas montanhas. Não o rio enquanto corpo imaginal, mas o seu movimento, a sua fluidez, aqua permanens, a solidez do vale e do pico enquanto lugares especificamente diferenciados gerada pela própria dissolução de um no outro.
Algo assim não pode ser imaginado, mas pode ser pensado negativamente quando o pensamento nega a si-mesmo como intelecto abstrato conservando-se nos vales mais profundos da imaginação. Não se trata da separação e depois a reunião, pois isso seria continuar preso na extensão temporal, onde a causa precede o efeito. Como a lógica do pico é informada pelo vale, cada um é o que é a partir do outro. O movimento ascendente pressupõe o movimento descendente e vice-versa. Quando pensados picos e vales revelam-se-criam-se como personificações de momentos específicos de um movimento autocontrário.
A psicologia arquetípica ao exilar-se no mundo inferior deixa o espírito livre para continuar literalizando suas abstrações. A rejeição do espírito afirma e estabiliza sua lógica abstrata não apenas lá no alto, mas também embaixo, restringindo a psicologia a fenômenos específicos do real como se ele fosse uma extensão compartimentalizada e não um devir interconectivo. Nem picos e nem vales, mas os dois conservados pela negação é o que constitui a psicologia enquanto identidade negativa de psique e logos.
RETORNO DO SI-MESMO
A psicologia arquetípica iniciou sua jornada exercendo uma pesada crítica ao foco dos junguianos tradicionais sobre o si-mesmo. Mas no momento em que ela reflete sobre sua concentração sobre a anima ele retorna enriquecido pela negação que sofreu. O si-mesmo como a unidade dos opostos não é mais um arquétipo separado dos outros, uma entidade que impulsiona a individuação a partir de fora. Ele é a singularidade mais íntima de toda e qualquer coisa, aquilo que algo é em si-mesmo.
O si-mesmo é uma unidade, consistindo porém de duas, isto é, de opostos, caso contrário não seria uma totalidade. (...) Apesar da natureza conservadora, os arquétipos não são estáticos, mas estão num constante fluxo dramático. Por isso o si-mesmo como mônada ou unidade contínua estaria morto. Mas ele vive na medida em que se divide e se une de novo. Não há energia sem opostos21.
A anima revelou-se como sendo em si-mesma a outra face do espírito, uma projeção sua e vice-versa. Eles são os reflexos invertido um do outro. A alma é em si-mesma a negação do espírito, que por sua vez é a negação da alma. Eles se determinam negando um ao outro. A alma é o que é, por negar o que o espírito é, sendo o não-espírito, assim como o espírito é a não-alma. A alma é então a não-não-alma e o espírito o não-não-espírito. Ao reencontrar-se no outro cada um retorna a si-mesmo enriquecido pela jornada negativa que sofreu, tornado-se aquilo que eles já eram ao reconhecerem-se como sendo neles mesmos o seu outro. A natureza de cada um é contra naturam, opondo-se a si-mesma e efetivando-se numa dissolução no outro que coagula aquilo que cada um é. Ambos negam duplamente a si-mesmos no outro, e por isso se afirmam através do outro. Se um não fosse o que fosse o outro não seria o que é. Assim como uma luz só torna-se visível ao ser refletida por uma superfície que lhe serve de obstáculo, a alma só torna-se consciente de si ao ser refletida no espírito, e é por sofrer a negação da alma que o espírito determina-se.
Determinatio est negatio (Espinosa). Sem negação não há si-mesmo, visto que ele é a determinação mais íntima de toda e qualquer coisa. Se for permitida a negação desenvolver-se até o final ela nega a si-mesma tornando-se aquilo que une a partir da própria separação. Sem negação haveria apenas um aglomerado amorfo e indiferenciado, mas graças ao poder do negativo, uma coisa deixa de ser um algo qualquer para ser algo singularmente específico. Tal processo poderia ser chamado de indivi-doação22, visto que cada um é mais individualmente si-mesmo ao doar-se para o seu outro.
Individoação, a realização do si-mesmo, não se restringe ao personalismo egóico, sendo um devir universal através do qual qualquer ser singulariza-se. Enquanto oposição o si-mesmo é um universal idêntico ao seu conceito, identidade da identidade e da diferença. Essa é a sua expressão mais pura e abstrata, mas enquanto universal ele não possui nada fora de si, incluindo a si-mesmo, e por isso opõe-se ao seu próprio conceito multiplicando-se em um número infinito de singularidades. Ele faz isso sem sair de si, ou melhor, ele penetra cada vez mais em si ao sair de si. Por sua essência ser oposição ele interioriza-se exteriorizando-se e unifica multiplicando-se. Ele é a unidade da unidade e da multiplicidade e aprofunda-se na sua essência conceitual única na medida em que aparece de forma múltipla. Essa é a sizígia expressa na linguagem conceitual abstrata do logos, que por ser dialético, é o outro de si-mesmo, uma abstração que personifica-se em um sem número de imagens. O logos é em si-mesmo o seu outro, psique, e vice-versa. Fazer psicologia exige realmente pensar as imagens, dissolvê-las no movimento lógico do conceito, que se deixado livre para seguir a sua essência adquire uma concretude sensorial. A psicologia como sizígia não dissocia monoteísmo de politeísmo, sendo um monoteísmo de conceito (demanda do espírito) e um politeísmo de imagens (demanda da alma). Não é a simples soma de um com o outro, mas a negação de um através do outro que simultaneamente conserva um no outro. A psicologia despersonifica as imagens pensando-as ao mesmo tempo em que personifica o pensamento imaginando-o, e ela só é psico-lógica se existe como a realização desse movimento urobórico onde cada oposto devora e cria a si-mesmo no outro.
PRINCÍPIO DA COERÊNCIA
O princípio que rege a dialética não é o princípio da não-contradição que rege a lógica analítico-formal, mas o princípio da coerência, que nega-conserva o princípio da não-contradição. O princípio da coerência conserva a importância da contradição para razão, mas nega que ela seja aquilo que a impossibilita, pois razão é movida pela contradição, sendo o que ela é em-si-mesma. O princípio da coerência é a identidade-diferenciada de dois outros princípios.
O primeiro é o princípio da identidade, tão básico e fundamental que quase nunca nos damos conta que o estamos utilizando. Ele diz que A é A, e está sendo sempre pressuposto como verdadeiro. O princípio da identidade se divide em três subprincípios23.
Identidade simples: Quando se diz A ou qualquer outra coisa, está se dizendo uma identidade simples. O A se destaca do seu pano de fundo e aponta para algo de determinado. Mas apesar de apontar e dizer algo determinado não há ainda uma predicação completa visto que sujeito e predicado não foram distinguidos um do outro24.
Identidade Interativa: O primeiro A se repete tornando-se A e A, podendo se repetir de novo e de novo tornando-se A, A, A. Enquanto a repetição é interativa é repetição do mesmo, não surgindo nada de novo. Mas identidade interativa é a primeira e mais básica forma de multiplicidade, e apesar de ser ainda uma multiplicidade do mesmo, é a partir dela que se inicia o movimento25.
Identidade reflexa: Começa quando se diz que A é igual a A. Aqui a identidade chega à plenitude, sendo agora possível formular a primeira predicação onde o sujeito é o primeiro A e o predicado o segundo A. Assim surge a tautologia, A = A, a mãe de todas as predicações ulteriores26.
O segundo princípio é o princípio da diferença, que começa quando se acrescenta à série de A, A, A, algo que não é apenas a repetição de A. Diferença é tudo que não é A. Essa diferença ainda é indeterminada, abstrata, determinando-se quando o não-A se torna B, C, D e assim por diante27.
Quando estes dois princípios se encontram três coisas podem acontecer. Um do dois permanece enquanto o outro desaparece. Os dois desaparecem e nada resta. Na terceira opção entra em cena o princípio da coerência, que funciona por meio de uma contradição concreta. Dizer A e não-A anula o dito, nada sobra, a razão silencia e o caos irracional prolifera. Em uma contemporaneidade dominada pela razão instrumental tecno-científica, o irracionalismo caótico é por demais sedutor e se dissemina como formação reativa. Um é o outro-si-mesmo do outro28. Mas se esse não-A assume a forma determinada de um B ou C é preciso se deixar permear pelo conflito entre os dois e refletir se o que na aparência é regido por Marte, na essência o é por Vênus. O que na razão analítica é excludente, na razão dialética é includente. O que em uma paralisa a ação da razão para outra é o combustível do seu movimento. Na dialética a contradição existe, não é impossível, e é através dela que a razão re-flexiona em-si-mesma se reencontrando no interior do próprio real.
O princípio da coerência é a unidade dos dois princípios que aparentemente se excluem. Identidade é aquilo que não é diferença e diferença é aquilo que não é identidade. O ser de um é o não ser do outro, e por isso o conceito de identidade é a negação do conceito de diferença e o conceito de diferença é a negação do conceito de identidade. Os dois só são coerentes consigo por incluírem na sua afirmação a negação do outro. A identidade do princípio da identidade consigo mesmo só se dá a partir da diferença com o princípio da diferença, assim como a identidade do princípio da diferença consigo mesmo só ocorre a partir da diferença com o princípio da identidade. Identidade contém a diferença em-si e a diferença contém a identidade em-si. Esse é o princípio da coerência, identidade da identidade e da diferença, que é a sizígia expressa na linguagem conceitual do animus e cujas manifestações concretas são o objeto de estudo da psico-logia.
DIALÉTICA E HISTÓRIA
A dialética não é relação no sentido de uma estrutura estática, mas no sentido de uma circulação contínua entre os opostos. Esse devir não é temporalmente extensivo, vindo do passado ao presente em direção ao futuro, mas é aprofundamento total e completo no presente que é efeito e causa do passado e do futuro. O tempo psicológico não é linear, extensivo, pois não flui apenas num sentido, do passado para o presente e deste para o futuro, mas também flui do futuro para o presente e deste para o passado. Futuro, presente e passado se co-determinam e a psicologia lida com um passado que é presente e um presente que é passado, e com um futuro que é presente e um presente que é futuro, ou seja, com um presente absoluto, unidade autocontrária de passado e futuro.
O presente não apenas determina e é determinado pelo passado, mas também determina e é determinado pelo futuro. Por ser a identidade-diferenciada do passado e futuro, porta em si as sementes da sua própria negação, de um futuro ainda incerto que pressiona para nascer. O presente é o momento imanentemente negativo que desvanece assim que germina, tornando-se desde já passado e sendo sempre um futuro que estar por vir. Ele é uma flor que negou-conservou o botão de onde nasceu e carrega as sementes do fruto que a sucederá, sendo assim uma trans-imanência, uma imanência que por conter o negativo em-si é devir que transcende a si-mesma.
Estamos total e completamente enraizados no presente sendo impossível observar com neutralidade o passado que é a fonte do próprio presente onde nos enraizamos. Olhamos para o passado a partir do que vivemos no presente e na medida em que alteramos o presente olhamos para o passado de forma diferente e descobrimos nele as causas para essa nova forma de ser presente. É o presente retornando infinitamente a si-mesmo.
A psicoterapia, enquanto processo de reconstrução da história do paciente, é arqueologia do passado que transforma o modo de abordá-lo ao alterar o presente que é causado por este passado, e que por isso causa um novo olhar para o passado que é a causa desse novo presente. Presente e passado são causa e efeito um do outro, e nada existe na causa que não esteja no efeito, assim como não há nada no efeito que não esteja na causa. O que é efeito é uma causa com efeito próprio e o que é primeiro causa é em-si-mesma, efeito e tem uma causa adicional própria. Causa e efeito contém um ao outro sendo inseparáveis. Ao produzir um efeito, a causa torna-se causa sendo por isso causa de si-mesma, logo efeito de si-mesma. O efeito é causa porque somente sua ocorrência faz com que a causa seja uma causa, pois o que define uma causa é a sua capacidade de gerar efeito, logo a causa é efeito porque se faz causa pelo seu efeito. Quando a reciprocidade entre causa e efeito é desfeita o resultado é a má infinitude, a regressão infinita onde qualquer causa é efeito não do seu próprio efeito, mas de alguma outra causa e qualquer efeito é causa não da sua própria causa, mas de algum outro efeito. Explicar qualquer evento em si-mesmo torna-se impossível, pois seus antecedentes causais regridem infinitamente29.
A dialética é assim uma forma sofisticada de tautologia, uma lógica ourobórica, autopoiética, onde o movimento de partida, a causa em que se apoia, e o movimento de chegada, o efeito posterior, retornam infinitamente um sobre o outro, interiorizando um ao outro no conceito (sizígia) que é o alfa e o ômega de todo o movimento, porque ele é esse movimento que interioriza a si-mesmo.
Esse devir é histórico e por isso não chegamos à antítese de uma tese através de uma manipulação lógico-semântica a priori. No tempo intensivo o passado é presente e precisa ser levado em consideração. É a partir da ação da história na linguagem e da linguagem na história que os opostos se engendram. Por ser uma lógica urobórica a circularidade dialética é absoluta e por isso o fechamento do círculo é também sua abertura às contingências históricas. Isso implica que uma tese nem sempre possui apenas uma antítese, e uma mesma tese e uma mesma antítese podem estar unidas de forma diferente dependendo do contexto histórico em que são abordadas30. Aqui a história do psicólogo penetra com toda força, pois a dialética como uma lógica da totalidade necessita incluir a história do psicólogo. O contexto total é a unidade autocontraditória da história de vida do estudioso e da vida histórica do seu objeto de estudo, e só se determina completamente a partir do momento em que se torna objeto de conhecimento. Como cada estudioso é atingido de forma diferente pela história, o contexto se determina de forma diferente dependendo do estudioso que o penetra, e o conhecimento que nasce dessa penetração é absoluto, pois o contexto conhece a si mesmo através do estudioso que o pensa a partir de dentro.
Não basta simplesmente colocar o “não” na frente de um predicado para engendrar uma verdadeira contradição. Se na lógica analítica basta pôr o não em uma proposição afirmativa para construir uma proposição negativa, o mesmo não ocorre na dialética, que é fiel a contingência histórica ao não deduzir a priori uma lista de pólos contrários com suas respectivas sínteses. Dizer que o contrário de A é não-A é por demais indeterminado. Uma coisa é A ou é não-A e assim conjunto A e não-A inclui tudo que existe de forma indeterminada31. Afirmar por exemplo que a psicologia é uma disciplina subjetiva e não-subjetiva é jogá-la na indeterminação, afinal tudo que não é subjetivo estaria incluído na psicologia, podendo ser ela uma disciplina matemática, geológica, anatômica, enfim qualquer coisa. Ao penetrarmos na história da psicologia veremos que a subjetividade e a objetividade estão em luta, uma se afirmando sobre a outra, e assim atingiremos uma verdadeira oposição, onde cada pólo é rico em conteúdos que se negam mutuamente. Aí teremos a chama necessária para a dialética, visto que cada pólo determina-se porque os seus conteúdos negam os conteúdos do pólo rival, e por isso precisa dele para poder se afirmar. Na contradição entre a subjetividade e a objetividade há uma dialética concreta em ação.
Esta unidade que inclui a diferença é a mysterium coniunctionis, a separação e síntese dos compostos que tanto fascinou os alquimistas e Jung depois deles. Esta unidade negativa não é visível ao primeiro olhar. Apenas através da intensidade reflexiva da oposição que constitui a prima matéria, é que ela é revelada-criada. No começo ela é apenas uma onda indeterminada de possibilidades, mas que se coagula numa experiência particular no momento que o estudioso abre todo o seu ser para receber o seu outro. Como o ser total do estudioso está envolvido no processo de conhecer, o conceito contém a identidade negativa do estudioso e do seu outro, sendo assim um conceito subjetivo-objetivo.
Esse processo não é restrito à subjetividade privada do homem, sendo virtualmente presente em qualquer parte do real. Apenas a sensibilidade reflexiva do estudioso dirá se ele está ou não diante de um processo dialético. Qualquer processo só é dialético se incluir a subjetividade do estudioso, pois necessita dele para ser o que é. “O que a natureza deixou incompleta, a arte aperfeiçoa”. Esse dito alquímico transparece que a natureza só é natureza para o homem, visto que ninguém mais tem um conceito de natureza. Mas por ser natureza apenas para o homem, ele é em sua própria natureza contra naturam.
Sem a oposição entre observador e observado não há a tensão necessária para a dialética porque ela é a conservação-negativa dessa oposição. Supor um real em-si incognoscível para o homem é para a dialética um nonsense, visto que o real só é real para o homem e ninguém mais. É através do processo humano de conhecer o real que o real conhece a si-mesmo, pois o real só é para o homem e por isso o inclui. O homem só conhece a si-mesmo conhecendo o real de que faz parte, pois só é homem enquanto parte desse real.
A SIZÍGIA NA OBRA DE JUNG
Um pouco antes de começar a redigir os Tipos Psicológicos, Jung teve um sonho que modificou o modo como planejava concretizar a obra. Sua intenção inicial era escrever o livro de forma clara, lógica e apurada ao estilo de O Discurso do Método de Descartes.Entretanto, ele fracassava ao tentar fazê-lo porque o estilo cartesiano não parecia adequado à imensa riqueza do material que tinha nas mãos.
Quando se defrontou com essa dificuldade, ele sonhou com um enorme barco fora do porto, carregado de maravilhosas mercadorias para a humanidade; o barco devia ser trazido para o porto e as mercadorias distribuídas ao povo. Ligado a esse enorme barco estava um cavalo árabe branco, muito elegante, bonito e delicado. Era um animal arisco e supunha-se que era ele quem ia puxar o barco até o porto. Mas o cavalo era absolutamente incapaz de fazê-lo. Nesse momento um enorme gigante de cabelos e barbas vermelhos atravessou a multidão empurrando todo mundo. Ele pegou um machado, matou o cavalo branco e pegando a corda puxou o barco até o porto, num único élan. Assim Jung percebeu que teria de escrever sob o fogo emocional do que sentia e não se apegar a esse elegante cavalo branco. Daí ele foi levado por um tremendo impulso de trabalho ou emoção e escreveu o livro praticamente de uma só vez, levantando toda manhã às três horas da madrugada32.
A atitude cartesiana de Jung era personificada pelo cavalo árabe branco que por si só era incapaz de levar o barco da sua obra adiante. O sonho compensou essa atitude através de uma outra forma de consciência personificada pelo gigante ruivo cuja matança do cavalo representa o sacrifício do intelecto necessário quando se lida com os produtos do inconsciente. As duas figuras personificam duas formas de consciência, uma emocionalmente bruta e a outra mentalmente refinada. O aparecimento de uma significava a morte da outra, e o sonho poderia ser descrito como um movimento enantiodrômico onde o excesso de lógica cartesiana transforma-se no seu oposto. Mas a lógica cartesiana, matriz do sujeito moderno, é personificada no sonho por um animal, enquanto a emoção bruta é personificada por uma figura humana. O animal possui uma bela e delicada brancura espiritual, enquanto o gigante possui uma brutalidade rubra e animalesca. As imagens negam uma à outra ao mesmo tempo em que partilham uma identidade profunda. Cada uma nega, mas é em sua própria negação a afirmação da identidade com a outra negada.
O fruto do sonho é a obra na qual Jung envolveu-se mais extensamente com a tradição histórica do logos. Quando as chamas emocionais incendiaram o seu pensamento ele pôde assumir a forma implicitamente dialética que conhecemos hoje. O pensamento junguiano não exclui unilateralmente as emoções como o faz a lógica tradicional, mas a conserva em sua própria negação, pois a diferença entre eles é interna a ambos. Essa é a lógica implícita em seus Tipos Psicológicos.
A função pensamento difere da função sensação de forma externa, indiferente, pois elas não se definem mutuamente. Contudo, se penetrarmos na interioridade da função pensamento a fim de determiná-la, de estabelecer sua identidade para descobrir de que modo ela funciona, o que se encontra é uma outra forma de consciência negada. Esse estilo de consciência chamada da função sentimento lida com os conteúdos psíquicos a partir do seu valor afetivo enquanto a função pensamento estabelece conexões a partir de conceitos. Uma complementa a outra ao mesmo tempo em que na sua mais íntima identidade a contradiz. A função pensamento pode atuar a vontade com a função sensação e a função intuição, mas quando se trata da função sentimento as faíscas se acendem, pois ela nega o seu funcionamento. A identidade de cada uma se faz a partir da negação da outra, e exatamente por isso precisa da outra para ser o que é, pois é precisamente a identidade da função sentimento que ao ser negada torna possível a função pensamento, e vice-versa. A lógica é a mesma na relação entre a função intuição e a função sensação33.
O conceito de inconsciente compensatório de Jung é o maior exemplo de como sua psicologia era, implicitamente, dialética. O inconsciente compensa a consciência, sendo em si-mesmo o outro interno a ela. O que para consciência é A, para o inconsciente é B, um conteúdo que nega de forma determinada o conteúdo A. O inconsciente funciona como o mundo invertido da consciência. Se uma pessoa é conscientemente introvertida encontrará o inconsciente fora de si, nos outros externos. Se for conscientemente extrovertida o inconsciente se manifestará através de elementos internos à sua personalidade. Como ninguém é só um o tempo inteiro, o inconsciente é ora externo, ora interno. O próprio conceito de inconsciente coletivo é a inversão do conceito de consciência coletiva. Em um predomina o intelecto pragmático, no outro a imaginação lúdica, um é lógico-racional, o outro é imaginativo-mítico, um se ocupa do progresso científico do presente para o futuro, o outro é inundado por fantasias míticas que remontam a um passado primevo, um só acredita naquilo que vê e pode conhecer, o outro é uma estrutura vazia e incognoscível. Nenhum é por si só a verdade, mas só é na relação com o outro que o nega e por negá-lo o conserva. No fim de sua vida pensando em sua obra como um todo Jung afirmou que ela enfatizava tudo aquilo que havia sido relegado para as margens pela consciência coletiva.
Na opinião de Jung, seu trabalho proporcionava o que faltava no Ocidente. Em outras ocasiões, ele se expressou com mais veemência a respeito de como fora recebido. Em 1958, disse para Aniela Jaffé que a falta de receptividade demonstrada para seu trabalho não era surpresa, pois sua obra era uma compensação. Tinha dito coisas que ninguém queria ouvir. Diante disso, considerava maravilhoso o tanto de sucesso que seu trabalho tinha conseguido obter, e que não poderia ter esperado mais34.
A idéia de oposição está no coração do pensamento de Jung, sendo quase um sinônimo de vida psíquica, visto que para ele os opostos são as inerradicáveis e indispensáveis precondições de toda a vida psíquica. Jung atribui ao filósofo grego Heráclito a paternidade da idéia de oposição complementar.
O velho Heráclito, que era realmente um grande sábio, descobriu a mais fantástica de todas as leis da psicologia: a função reguladora dos contrários. Deu-lhe o nome de enantiodromia (correr em direção contrária), advertindo que um dia tudo reverte em seu contrário35.
Jung trabalhou extensivamente com o conceito heraclitiano de enatiodromia, onde tudo que chega ao seu extremo transforma-se em seu oposto, mas ele não ouviu o que realmente o conceito falava, e temerosamente isolou a psicologia da insana fluidez enantiodrômica. Jung recuou diante do insight que algo é mais extremamente si-mesmo quando é também o seu outro. Ele preferiu se proteger isolando-se desse inquieto si-mesmo na calma paz do meio-termo.
No entanto, se o indivíduo conseguir reconhecer o inconsciente a modo de fator co-determinante, ao lado, do consciente, vivendo do modo mais amplo possível as exigências conscientes e inconscientes (isto é, instintivas), então o centro de gravidade da personalidade total deslocar-se á. Não persistirá no eu, que é apenas centro da consciência, mas passará para um ponto por assim dizer virtual, entre o consciente e o inconsciente: o si-mesmo (Selbst)36.
Neste local estático abstraído de ambos os pólos, ele escapou da dissolução dialética não pagando o preço exigido pela enantiodromia, continuando a pensar os opostos externamente. Mas a enantiodromia diz que quando algo torna-se absolutamente idêntico a si-mesmo, afirmando-se em sua máxima intensidade, nega-se tornando-se o seu oposto. Em termos lógicos isso revela que algo é absolutamente si-mesmo a partir do seu outro. A absoluticidade de algo é a sua relativização não por um outro qualquer, mas pelo outro que algo é. O absoluto é relação, identidade da sua identidade consigo mesmo e da sua diferença. Algo é si-mesmo um outro-em-si , estando mais intimamente dentro de si ao exteriorizar-se como um outro numa exterior-intimidade.
A enantiodromia exige que a consciência não se abstraia, mas seja ela mesma esse movimento onde a intimidade absoluta nega-conserva-se como exterioridade absoluta, como uma extimidade. É isso que os chineses tentavam expressar por meio do Tao. O problema é que enquanto o diagrama Yin-Yang for uma imagem, um conteúdo da consciência, ele ainda será estático. A consciência precisa se dissolver nele deixando-o permeá-la, tornando-se una com ele em seu próprio movimento. Quando isso acontece cada pólo se revela-cria como indivisível por doar-se ao seu outro, visto que sua indivisibilidade é em-si a sua doação, individoação.
Jung afirmava que a psique era o terceiro excluído por conciliar a oposição entre esse in intellectu e esse in re através da sua principal atividade, a fantasia37. Quando ele afirma que a psique cria realidade todo dia e que o nome dessa realidade é fantasia, não precisamos entender que primeiro existe uma realidade concreta, que contém um ser humano, que contém uma psique em seu interior subjetivo, e que entre uma de suas inúmeras atividades está a de transformar fantasia em realidade. Essa abstração extensiva não consegue captar a inter-relação entre fantasia e realidade. Quando a razão abstrata afirma que algo é fantasia, significa que não é realidade, que é uma criação subjetiva. Quando afirma a realidade de algo, nega que esse algo seja uma fantasia, que pertença à esfera subjetiva do homem. Realidade e fantasia são categorias reflexivas, negam uma à outra de forma absoluta, pois negam a outra colocando-a como externa a si. Como são em si-mesmas essa negação da outra, também negam a identidade abstrata de cada uma consigo mesma. Essa dupla negação é o que torna fantasia e realidade a negação absoluta uma da outra, e por isso a afirmação absoluta uma da outra. Psicologia é a consciência da realidade interna à fantasia e da fantasia interna a qualquer realidade.
SIZÍGIA EM AÇÃO
A história recente foi testemunha de uma sizígia cuja tensão pôs o mundo inteiro de sobreaviso diante da ameaça de total e completa destruição nuclear. De um lado os Estados Unidos, autointitulado campeão da liberdade individual, mas cego para sua sombra coletivista, para os movimentos massificantes da cultura pop fabricados por multinacionais que manipulam tão eficientemente os gostos e opiniões pessoais ao ponto de fazerem os indivíduos acreditarem que compram seus produtos de acordo com sua livre e espontânea vontade. Do outro lado estava a União Soviética, autointitulada representante do socialismo comunista, que para poder funcionar esmagava a liberdade individual ao mesmo tempo em que cultuava certos indivíduos escolhidos pelo Partido para representarem a alma coletiva, cujos exemplos mais significativos foram Lênin e Stalin. Ao redor da aura fornecida por eles circulava uma elite que lutava pela abolição da propriedade individual, mas gozava dos privilégios exclusivos daqueles que possuíam grande poder político. Cada metade do par atuava a sombra da outra metade, sua extimidade. O resultado foram décadas de guerra fria e paranóia nuclear.
Um outro exemplo da sizígia provém de uma paciente que procurou atendimento queixando-se de depressão. Ela tinha problemas com um marido agressivo, ciumento e “beberrão” (palavras dela). Certo dia ele havia saído para beber com os amigos e ela adormeceu enquanto o esperava. Ele chegou muito tarde e ela cansada de ser deixada só durante a noite em plena semana enquanto ele saia para beber se irritou e gritou que não agüentava mais a vida que estava levando. Ele estava tão embriagado que não conseguia dizer uma palavra indo dormir no sofá enquanto ela se acalmava. Ela demorou a dormir, estava com tanta raiva que ficou rolando de um lado para o outro escutando os roncos do marido no sofá. Quando dormiu sonhou que acordava durante a noite para fechar a porta da frente da sua casa e de repente encontrava um cachorro preto e furioso que estava no limiar da entrada, rosnando e olhando fixamente para ela. O cão saltou sobre o seu pescoço enforcando-a com suas patas, nesse momento ela despertou. Levantou tão aterrorizada que acordou o marido e pediu para ele ir dormir na cama com ela. Quando ele a abraçou ela se acalmou e conseguiu adormecer.
Mergulhamos nas imagens do sonho. Para ela o cão era o animal mais amigo do homem, mas ela o associou também ao demônio cristão, ao satanás. Relacionou também o animal ao marido que sob determinadas circunstâncias era um bom homem, mas quando bebia ficava agressivo costumando perder o controle. Certo dia ele havia saído para beber e ela cansada de ficar só em casa saiu para casa de uma amiga, quando chegou ele estava bêbado e possesso de raiva perguntando onde ela havia ido, não aceitando qualquer argumento dela e no calor da discussão bateu nela. No outro dia ele chorou arrependido, desculpou-se e pediu para ela nunca discutir enquanto ele estivesse bêbado, pois ele perdia a cabeça. Ela sentia-se protegida ao seu lado, mas ao mesmo tempo tinha medo do seu ciúme. Quando saiam juntos para as festas era só para brigarem. Ele ficava desconfiado e se ela olhava para baixo ficava perguntando se não estava gostando e no que estava pensando. Se ela olhava para o lado ficava perguntando para quem estava olhando. Ela achava que ele a traía, ele era um cachorro, podia sair a hora que quisesse, mas não deixava ela fazer o mesmo. Mesmo sendo tratada como um cão sarnento ela não sentia vontade de traí-lo. Ela costumava acordar com dores no pescoço, ele a sufocava. A situação não era novidade para ela, pois sua infância desenrolou-se na convivência com uma mãe constantemente irritada, que costumava descarregar nela suas frustrações por meio de críticas ácidas. Na juventude quase não saia de casa, pois a mãe a prendia e vigiava o tempo inteiro. Encoleirada em casa sentia-se triste e só por não poder se divertir como as garotas da sua idade. Apesar e odiar a situação em que se encontrava sua carência a impedia de separar-se. Quando ficava só sentia-se como um cão sem dono. Não sabia o que fazer para mudar, senti-se desorientada, cega, perdida.
O sonho personificava a diferença interna entre as qualidades com as quais ela se identificava e aquelas que precisava excluir para ser o que era. A mãe e o marido encarnavam para ela a agressividade com a qual não conseguia lidar. A raiva era um excesso para sua forma calma e tranqüila de estar no mundo e por isso precisava ser excluída. Mas o interior mais íntimo é o outro de si-mesmo, exteriorizando-se para ser vivido no mundo e por isso sempre se encontra algo ou alguém para encarnar essa exterior intimidade. No caso da paciente era o marido que atuava o não-ser do seu ser. Ele refletia aquilo que lhe era mais externo e exatamente por isso também mais interno. Ele a agredia e também a protegia, sobretudo de encarar qualidades que lhe eram tão íntimas, mas também estranhamente assustadoras. Cada par do relacionamento encenava uma polaridade, e enquanto a extimidade dela fosse literalmente atuada por ele, ela continuaria petrificada no papel de vítima e ele no de agressor.
O movimento realizado aqui não é um trânsito horizontal entre uma multiplicidade de perspectivas. Não há um mercado psicológico cujas prateleiras oferecem múltiplas formas de estar no mundo para que se escolha aquela que agrade. Não há saída horizontal para fora da neurose, e procura-la é o melhor modo de continuar preso nela. A única saída é interna, o que exige um movimento vertical de aprofundamento nos conteúdos por ela apresentados.
Não se deveria procurar saber como liquidar uma neurose, mas informar-se sobre o que ela significa, o que ela ensina, qual sua finalidade e sentido. Deveríamos aprender a ser-lhes gratos, caso contrário teremos um desencontro com ela e teremos perdido a oportunidade de conhecer quem somos. Uma neurose estará realmente “liquidada” quando tiver liquidado a falsa atitude o eu. Não é ela que é curada, mas é ela que nos cura. A pessoa está doente e a doença é uma tentativa da natureza de curá-la. Por isso podemos aprender muita coisa da doença para a nossa saúde e que aquilo que parece ao neurótico absolutamente dispensável, contém precisamente o verdadeiro ouro que não encontramos em outra parte38.
A cura estava na própria ferida, nas constantes brigas e discussões que a enraiveciam tanto que algumas vezes ela chegava a explodir em fúria. Quando o sangue esfriava não se reconhecia, chegando a sentir-se culpada por ter ficado tão possessa. O processo terapêutico penetrou nas situações nas quais ela saiu de si, possuída por uma raiva que lhe era tão estranha e ao mesmo tempo a acompanhou durante toda a sua vida. O que exatamente ela sentia? Onde sentia? Em quais partes do seu corpo sentia o seu sangue ferver? O que ela sentia-se impelida a verbalizar quando ficava possessa? Por que ela sentia-se tão culpada? Ela estava tão identificada com sua posição de vítima que enxergava a si-mesma em sofrimento quando explodia de raiva com alguém. Por que manter uma fidelidade tão canina à sua posição de vítima? Essas perguntas trouxeram a tona o medo do desconhecido, muito maior do que o medo de uma situação que apesar de lhe causar sofrimento, já era uma velha conhecida sua. O cão lhe causava medo, mas por ser algo puramente externo era mais fácil de lidar do que aventurar-se na independência. No decorrer do processo a imagem do sonho se liquefez numa forma de consciência no qual passividade e agressividade não mais se excluíam unilateralmente, mas incluíam uma à outra. Desidentificar-se com uma determinada forma de ser só é possível a partir da identificação consciente com as qualidades por ela excluídas. Assim a consciência não precisa mais manter-se isolada da sua antítese. Como uma não era mais excluída da outra, não atuavam mais tão cegamente, visto que eram agora refletidas uma na outra como a verdade mais íntima uma da outra. A consciência circulava entre os opostos, a calma tranquila não era mais tão ameaçada por sua contraparte violenta e agressiva, e a agressividade canina trouxe o impulso necessário para uma existência menos encoleirada. Não se trata de encontrar o meio-termo, um equilíbrio estático que permanece igualmente distanciado de cada pólo, mas de um equilíbrio dinâmico, um movimento constante e contínuo, no qual cada pólo flui no outro. A dialética é devir eterno, e lidar com os opostos é o trabalho de uma vida na medida em que cada vida singular existe como o contínuo re-solver da sizígia.
O sintoma neurótico é uma formação de compromisso entre as polaridades. Ele é um outro-em-si, uma ferida que contém as sementes da cura. Essas sementes brotam a partir da aquosidade interna ao próprio sintoma. Ele é produto da lógica extensiva que permite ao ego proteger-se da extimidade ao excluir um pólo do outro. Mas aquilo que é recalcado sempre retorna, seja a partir dos aspectos internos da personalidade ou a partir de elementos externos. A psicologia do ego costuma neurotizar a interiorização ao tomá-la como o recolhimento de um conteúdo externo para dentro da personalidade. Tal concepção supõe a possibilidade de um mundo objetivo, completamente externo à subjetividade. Esse movimento não é vertical, mas horizontal, ocorrendo no espaço extensivo onde interno e externo excluem-se. Hoje, mesmo a mais materialista das ciências, a física, admite que quando se atinge o interior daquilo que é mais objetivo, a matéria, não existe mais neutralidade científica. Os fenômenos subatômicos refletem a perspectiva adotada pelo observador, e não há outro modo de encarar o mundo além da posição que assumimos diante dele. Interiorizar a projeção não é reverter unilateralmente o seu movimento, mas interiorizar-se naquilo que ela apresenta. No caso da paciente é a abertura da sua essência para aquilo que confronta o seu modo de ser.
Essa tarefa não pode ser delegada apenas para os pacientes. Muitos psicólogos preferem esconder-se atrás das barreiras supostamente objetivas fornecidas por suas teorias, tentando escapar do aspecto dialético da subjetividade. No entanto, ela insiste em transferir-se para o interior do psicólogo, que tenta a todo custo manter-se imune a ela. Como o psicólogo responde a esse processo? Ou ele não toma consciência dele e prossegue muitas vezes atuando-o inconscientemente, ou ele o reconhece e teoriza sobre ele, alertando sua importância para a prática. O reconhecimento da plena realidade desse fenômeno, cuja essência é a transgressão do espaço extensivo, não ocorre se o psicólogo frustrar o próprio movimento analisando-o de forma abstrata, como uma projeção do mundo interno do paciente sobre o seu mundo interno e que por isso precisa retornar ao seu local de origem. O movimento no qual a interioridade do paciente não pertence apenas a ele mesmo e a interioridade do psicólogo também não, tem seu reconhecimento frustrado no momento em que o terapeuta o interpreta como a projeção de algo que sai de um interior subjetivo abstrato para outro interior subjetivo abstrato. Assim o esse in anima, o estar imerso na alma, não tem sua realidade reconhecida nem mesmo na prática psicológica, visto que paciente e psicólogo continuam tendo o seu ser aprisionado dentro de si mesmos. A psique é então privada da sua essência, que é estar mais dentro de si-mesma quanto mais está mais fora de si-mesma, imersa no mundo, porque a psique não é uma coisa, não possui propriedades espaciais. Seu interior é relação.
Não há escapatória desse processo, e o melhor que se pode fazer é dar-lhe a devida atenção visto ser ele uma valiosa fonte de informação. Em alguns momentos eu sentia raiva da paciente por ela continuar presa naquela situação, outras vezes sentia raiva de mim por não poder ajudá-la, enquanto outras vezes sentia raiva do marido por tratá-la daquele modo. Tinha fantasias de que a psicoterapia lhe daria o continente materno necessário para superar a sua depressão. Em certos momentos sentia-me cego, perdido, triste por não saber o que fazer para ajudá-la. Em outros momentos a interpretação que eu fazia do seu material soavam para ela como uma crítica a sua pessoa, enquanto eu me imaginava como um guia para o mundo interior, como se ela não conseguisse enxergar com seus próprios olhos e precisasse de um cão para guiá-la. Como eu poderia pedir que ela penetrasse no material que emergia nas sessões e não fazer o mesmo? É hipocrisia exigir isso dos pacientes e permanecer imune às contaminações psicológicas que ocorrem no encontro. A psicologia não é ciência, mas com-ciência39, e o psicólogo não é um cientista neutro, mas é em relação e isso inclui aquilo que ele está sendo no momento do atendimento.
A psicológica é a dialética éxtima, trans-imanente a qualquer fenômeno. É uma análise-sintetizante, um eros-lógico, uma teoria-prática. E a psique é a verdade interna a todo e qualquer ser, e sendo um outro-em-si, só é ela mesma quando refletida no seu outro-si-mesmo, o logos. E isso é psicologia, a unidade da unidade e da diferença de psique e logos.
andre.mercurio@hotmail.com
NOTAS
Trecho do livro PSICOLOGIA DIALÉTICA: UMA CRÍTICA INTERNA À PSICOLOGIA JUNGUIANA, escrito pelo autor e disponível em http://clubedeautores.com.br/book/3630--Psicologia_Dialetica
1.HILLMAN.J, Psicologia Arquetípica. São Paulo: Cultrix, 1995.
2.HILLMAN.J,O Livro do Puer. São Paulo: Paulus,1998.
3.HILLMAN.J, Anima. São Paulo: Cultrix, 1995.
4.JUNG.CG, Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, Obras Completas Vol IX/1. Petrópolis: Editora Vozes, 2000.
5.HILLMAN.J, Anima.
6.JUNG.CG, ibid, p.81.
7.HILLMAN.J,ibid.
8.HILLMAN.J,ibid.
9. HILLMAN.J,ibid.
10.JUNG.CG, Ab- reação, Análise dos sonhos, Transferência. Obras Completas Vol XIV/2. Petrópolis: Editora Vozes,1987.
11.JUNG.CG, Mysterium Coniunctionis, Obras Completas Vol XIV/1. Petrópolis: Editora Vozes, 1985.
12.HILLMAN.J,ibid.
13.HILLMAN.J,ibid. p.191.
14. HILLMAN.J,ibid, p.187.
15. Existência no sentido de aparecer, de manifestar-se, de ser efetivo, seja material, mental, ou emocionalmente.
16.HILLMAN.J, Re-Imaginar la Psicologia. Madrid: Siruela, 1999.
17.HEGEL.GW,The Science of Logic. Disponível em http://www.marxists.org/reference/archive/hegel/hl_index.htm.
18.GIEGERICH.W, The Neurosis of Psychology. New Orleans: Spring Journal Books, 2005.
19.HILLMAN.J, Entre Vistas.p.65. São Paulo: Summus, 1989.
20.GIEGERICH.W, MILLER.D, MOGENSON.G Dialectics & Analytical Psychology. New Orleans: Spring Journal Book, 2005.
21. JUNG.CG, Cartas Volume II.pp.334, 335. Petrópolis: Editora Vozes, 2002.
22.BERNARDI.C, Individoação:do Eu ao Outro, Eticamente. Disponível em http://www.rubedo.psc.br/artigosb/jgetiind.htm.
23.CIRNE-LIMA.C, Dialética para Principiantes. São Leopoldo: Editora UNISINOS, 2002.
24.CIRNE-LIMA.C,ibid.
25.CIRNE-LIMA.C,ibid.
26.CIRNE-LIMA.C,ibid.
27.CIRNE-LIMA.C,ibid.
28.Segundo a teoria da complexidade caos e ordem pertencem um no outro, visto que toda ordem oculta em-si uma desordem, e todo caos contém uma ordem não percebida de imediato.
29.HEGEL.GW,ibid.
30.CIRNE-LIMA.C,ibid.
31.CIRNE-LIMA.C,ibid.
32.VON-FRANZ.ML, A Sombra e o Mal nos Contos de Fadas.São Paulo: Edições Paulinas, 1985.
33.JUNG.CG, Tipos Psicológicos.Rio de Janeiro: Editora Guanabara,1987.
34.SHAMDASANI.S, Jung e a Construção da Psicologia Moderna. p.375 São Paulo: Idéias & Letras , 2005.
35.JUNG.CG, Estudos Sobre Psicologia Analítica,Obras Completas Vol VII.p.64-65. Petrópolis: Editora Vozes,1981.
36. JUNG.CG & R.WILHELM, O Segredo da Flor de Ouro. p.59. Petrópolis: Editora Vozes,1984.
37. JUNG.CG, Tipos Psicológicos.
38. JUNG.CG, Civilização em Transição, Obras Completas Vol X/3.pp.160-161. Petrópolis: Editora Vozes, 1993.
39.A palavra consciência deriva de con ou cum, que significa “com” ou “juntamente com”, e scire, “saber”. O termo porta então o sentido de “conhecer com” um “outro”. A palavra ciência deriva apenas de scire, que porta o sentido de saber sem o estar junto. Ver EDINGER.E, A Criação da Consciência. São Paulo: Cultrix, 1993.
Olá, André. Td bem?
ResponderExcluirEste artigo esta publicado?? Preciso para citá-lo.
Obrigada!
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