Obs: Os números que se vêem ao longo do texto correspondem às notas.
FUNÇÃO TRANSCENDENTE NA OBRA DE JUNG1
ANDRÉ DANTAS
A Psicologia Junguiana iniciou-se em 1912, quando Jung encontrava-se em pleno epicentro de uma rachadura na comunidade psicanalítica. De um lado estava Freud, criador da disciplina e defensor da teoria sexual como pedra fundamental na construção de um tratamento das neuroses. Do outro estava Adler, um dos primeiros discípulos de Freud, defensor do complexo de poder como fator determinante na etiologia das neuroses. No meio dos dois estava Jung, o príncipe herdeiro do império freudiano, que durante os anos da crise estava escrevendo o trabalho que seria a última pedra do muro que o separaria de Freud. Jung sentia essa rachadura nas profundezas do seu ser, pois se sentia em dívida com a teoria de Freud apesar de discordar quanto à centralidade da sexualidade. Em suas memórias Jung lembra que no começo de sua trajetória psicanalítica Freud era uma persona non grata no meio acadêmico, mas mesmo diante das reservas que ele próprio mantinha em relação à teoria sexual, assumiu a causa freudiana defendendo-a dos diversos ataques que sofria na época. Com a convivência Jung percebeu a enorme importância pessoal e filosófica que a teoria sexual tinha para Freud. Para Jung era principalmente sua atitude em relação ao espírito que lhe parecia equivocada.
Tenho ainda uma viva lembrança de Freud me dizendo: “Meu caro Jung, prometa-me nunca abandonar a teoria sexual. É o que importa, essencialmente! Olhe, devemos fazer dela um dogma, isto é, um baluarte inabalável.” Ele me dizia isso cheio de ardor,como um pai que diz ao filho: “Prometa-me uma coisa, meu caro filho: vá todos os domingos à igreja”. Um tanto espantado, perguntei-lhe: “Um baluarte contra o quê?” Ele respondeu-me: “Contra a lama negra do ocultismo!” O que me alarmou em primeiro lugar foi o “baluarte” e o “dogma”: um dogma, isto é, uma profissão de fé indiscutível surge apenas quando se pretende esmagar uma dúvida, de uma vez por todas. Não se trata mais de um julgamento científico, mas revela somente uma vontade de poder pessoal2.
Apesar de naquele momento não ter se pronunciado contra tal posição, Jung não podia concordar com ela. O que Freud entendia por ocultismo era aproximadamente tudo o que a filosofia, a religião e a nascente parapsicologia do início do século diziam da alma. Mas para Jung a teoria sexual era tão oculta, isto é, tão hipotética quanto outras tantas concepções especulativas. O que Jung ainda não havia compreendido de todo era o quanto a sexualidade era numinosa para Freud. Quando falava sobre ela era “num tom insistente, quase ansioso, e desaparecia sua atitude habitual, crítica e céptica. Uma estranha impressão de inquietude, cuja causa eu ignorava, marcava o seu rosto”3. Como mais tarde veio a entender, Jung estava no meio de uma irrupção de fatores religiosos inconscientes em Freud, que queria recrutá-lo para uma defesa contra essa ameaça. Até então Jung jamais considerara a sexualidade algo de flutuantemente precário a que se devia fidelidade devido ao medo de perdê-la. Jung sentia que havia lançado um olhar furtivo em direção a um país ainda desconhecido, de onde afluíam uma nuvem de idéias novas.
Parecia-me claro que Freud, proclamando sempre e insistentemente sua irreligiosidade, construíra um dogma, ou melhor, substituíra o Deus ciumento que perdera, por outra imagem que se impusera a ele: a da sexualidade. Ela não era menos premente, imperiosa, exigente, ameaçadora e moralmente ambivalente. Psiquicamente falando, aquilo que é mais forte e, portanto, mais temível, toma os atributos de “divino” e de “demoníaco”; da mesma forma, a “libido” sexual” se revestira e desempenhara nele o papel de um deus oculto. A vantagem desta transformação consistia, para Freud, ao que parece, que o novo princípio “numinoso” se lhe afigurava cientificamente irrecusável e livre de qualquer hipótese religiosa. Mas, no fundo, a numinosidade – enquanto classificação psicológica desses contrários, racionalmente incomensuráveis, que são Javé e a sexualidade – permanecia a mesma. Só mudara o nome, e por conseguinte o ponto de vista4.
Uma característica em especial da personalidade freudiana que preocupava Jung era a sua amargura, com o tempo foi percebendo o quanto ela se devia a sua relação com a sexualidade. Apesar da numinosidade que se apoderava dele, sua teoria não conseguia expressá-la adequadamente, pois a terminologia característica dos seus escritos não conseguia veicular a intensidade que brilhava quando ele falava do assunto.
Certamente, para Freud, a sexualidade era numinosa, mas em sua terminologia, em sua teoria a considerava exclusivamente como função biológica. A animação que falava desse tema permitia concluir que tendências ainda mais profundas ressoavam nele. Em suma: ele queria ensinar – pelo menos é o que me pareceu – que, considerada subjetivamente, a sexualidade engloba também a espiritualidade, ou possui uma significação intrínseca. Mas sua terminologia, demasiado concreta, era muito restrita para poder formular esta idéia. Minha impressão era que, no fundo, ele trabalhava contra sua própria meta e contra si mesmo. Pois bem:haverá maior amargura do que a de um homem que é seu mais encarniçado inimigo? Citando palavras suas: ele se sentia ameaçado por “uma onda de lodo negro”, ele, aquele que antes de qualquer outro tentara penetrar e tirar a limpo as profundidades negras. (..) Era cego em relação ao paradoxo e à ambigüidade dos conteúdos do inconsciente e não sabia que tudo o que dele surge tem um alto e um baixo, um interior e um exterior. Quando se fala apenas do aspecto exterior – é o que Freud fazia – só se toma em consideração uma das metades e como conseqüência inevitável nasce uma reação no inconsciente5.
Devido à unilateralidade do seu pensamento, Freud tornou-se vítima do único lado que podia identificar e isso era o trágico em sua figura, pois ele era um homem que possuía o fogo sagrado, mas só conseguia vê-lo pela metade. Por isso Freud não podia aceitar interpretações divergentes como a de Adler, visto que ela apresentava aspectos ocultos do seu próprio pensamento.
Depois, houve o problema da confrontação do problema do amor – ou Eros – e do poder, que caiu sobre mim como uma opressiva capa de chumbo. Mais tarde, Freud disse-me que nunca lera Nietzsche. De resto eu considerava a psicologia de Freud uma manobra da história do espírito que vinha compensar a divinização do princípio de poder realizada por Nietzsche. O problema realmente não era “Freud versus Adler”, mas “Freud versus Nietzsche”. Esse problema me parece bem mais importante do que uma contenda doméstica no domínio da psicopatologia. Surgiu-me a idéia de que Eros e o instinto de poder eram que como irmãos inimigos, filhos de um só pai, filhos de uma força psíquica que os motivava e – como a carga elétrica positiva e negativa – se manifestava na experiência sob a forma de oposição: o Eros como patiens, como uma força que se sofre passivamente e o instinto de poder como um agens, como força ativa, e vice-versa. O Eros recorre tantas vezes ao instinto de poder como o instinto de poder ao Eros. O que seria um desses instintos sem o outro6?
Toda vez que um acontecimento numinoso vibra intensamente, o ser humano pode cair num “sim” absoluto ou num “não” absoluto. O perigo do numinoso é o seu extremismo que eleva e rebaixa simultaneamente, pois de um ponto de vista é verdadeiro enquanto de outro é falso.
Minha conversa com Freud mostrara-me o quanto ele temia que a clareza numinosa de sua teoria fosse extinta por uma onda de lodo negro. Assim, criava uma situação mitológica: a luta entre luz e trevas. Esta situação explica a numinosidade da questão e o recurso imediato a um meio de defesa, tirado do arsenal religioso: o dogma. (...) A interpretação sexual por um lado, e a vontade de poder manifestada pelo dogma, por outro, me orientaram no correr dos anos para o problema tipológico, assim como para a polaridade e a energética da alma. Depois, comecei a investigação que se estendeu através de várias décadas, acerca da onda de lodo negro do ocultismo; esforcei-me por compreender as condições históricas, conscientes e inconscientes, da psicologia moderna7.
O problema da polaridade foi a bússola que guiou o mergulho de Jung nas profundezas da alma. Por isso ele nunca abandonou Freud totalmente já que sua fidelidade era à visão que impulsionava Freud e não à letra freudiana. Como Freud, Jung estava em busca do inconsciente recalcado, mas para isso ele teve de ir contra o dogma sexual, relativizando sua importância como um dos muitos conteúdos possíveis de serem recalcados.
Olhando para trás, posso dizer que sou o único que prosseguiu o estudo dos dois problemas que mais interessavam Freud: o dos “resíduos arcaicos” e o da sexualidade. Espalhou-se o erro de que não vejo o valor da sexualidade. Muito pelo contrário, ela desempenha um grande papel em minha psicologia, principalmente como expressão fundamental – mas não a única - da totalidade psíquica. Minha preocupação essencial era, no entanto, aprofunfar a sexualidade além do seu significado pessoal e seu alcance da função biológica, explicando-lhe o lado espiritual e o sentido numinoso. Exprimia, assim, o que fascinara Freud, sem que este o compreendesse. Os livros Psicologia da Transferência e Mysterium Coniunctionis expõem minhas idéias sobre o tema. Como expressão de um espírito ctônico, a sexualidade é da maior importância. Esse espírito é “a outra face de Deus”, o lado sombrio da imagem de Deus. Os problemas do espírito ctônico me preocuparam desde que tomei contato com o mundo das idéias da alquimia8.
Se a fidelidade de Jung foi ao fogo sagrado que ardia no coração freudiano e não à letra fixada em seus escritos, do mesmo modo aqueles que pretendem seguir o caminho por ele aberto precisam aprender a captar nas entrelinhas dos seus escritos o espírito que o impulsionava. A atitude de Jung em relação a Freud convida os seus discípulos a não caírem na cisão unilateral entre ortodoxia e iconoclastia, mas a suportarem a tensão entre as duas, traindo a letra em fidelidade à alma do trabalho. Mas qual a alma do trabalho junguiano? Como vimos, o que levou Jung a traçar uma linha de fuga do caminho freudiano foi a unilateralidade da concepção de inconsciente, incapaz de captar suas contradições. O que na aparência é visto como rompimento, para Jung tratou-se de um aprofundamento no lado oculto das idéias de Freud. Até o fim da sua vida Jung foi de certa forma um freudiano, visto que ele mergulhou como poucos na sombra da teoria sexual, a lama negra do ocultismo, o aspecto místico-religioso da alma que a psicanálise excluía por contradizer suas afirmações centrais. Isso implicava retornar às afirmações que haviam reprimido a sexualidade durantes séculos, e Jung estava ciente do perigo de que isso restaurasse unilateralmente as antigas posições veementemente combatidas por Freud. Era necessário suportar a tensão entre as contradições sem afirmar a superioridade de uma sobre a outra, pois foram os excessos unilaterais da espiritualidade que fermentaram o retorno patológico da sexualidade negada, que borbulhava nos sintomas neuróticos da virada do século. Sem a igreja não haveria psicanálise porque o que ela trouxe à tona foi tudo aquilo que a primeira havia ontologicamente excluído da alma. Mas Freud assumiu o partido contrário com tanta veemência que perdeu a conexão entre a sua posição e a do seu inimigo, combatendo-a sem perceber que a reproduzia em suas próprias atitudes.
Olhando em retrospecto Jung percebeu que o centro em torno do qual circula toda a sua obra é a problemática dos opostos, a qual ele dedicou os últimos esforços que fecharam o ciclo do seu pensamento.
O Mysterium Coniunctionis constitui a conclusão do confronto da alquimia com a minha psicologia do inconsciente. Nessa obra retomei mais uma vez o problema da transferência, e segui minha primeira intenção que era descrever a alquimia em toda a sua amplitude, como uma espécie de psicologia da alquimia, ou como um fundamento alquimista das profundezas. Só com o Mysterium Coniunctionis minha psicologia foi definitivamente colocada na realidade e estabelecida em seu conjunto graças aos seus fundamentos históricos. Assim, minha tarefa foi cumprida e minha obra terminada. No momento em que atingi o fundo sólido, toquei ao mesmo tempo o limite extremo daquilo que era, para mim, cientificamente atingível: o transcendente, a essência do arquétipo em si-mesmo, a propósito do qual não se poderia formular mais nada de científico9.
Para darmos prosseguimento à obra de Jung precisamos começar onde ele parou, no transcendente, na essência do arquétipo em si-mesmo à propósito do qual não se pode formular mais nada de científico. Mas como se trata das misteriosas conjunções alquímicas onde os opostos são separados e sintetizados, o movimento para frente e para trás são duas faces de um só e mesmo caminho. Levar a obra junguiana adiante requer o retorno ao momento da sua gênese como uma práxis independente de Freud. Se o que motivou o rompimento foi a fidelidade ao paradoxo da alma em torno do qual são tecidas suas reflexões, então não há uma separação entre seus primeiros trabalhos e os últimos dedicados à alquimia como pensam alguns junguianos. Todo ele é dedicado ao espírito mercurial cuja bifacialidade só pode ser descrita quando a razão científica e a imaginação mitopoética trabalham em conjunto. Jung percebeu na alquimia um ancestral histórico da sua psicologia, porque ela também expressava uma especial dedicação ao problema da oposição que desde o início absorveu toda a sua atenção.
Em 1958 foi publicada uma versão revisada de um ensaio escrito por Jung originalmente em 1916. Ele permaneceu oculto até ser descoberto por estudantes do Instituto C.G Jung de Zurique em 1957. Este ensaio explicita a conexão nem sempre aparente entre os primeiros e os últimos escritos de Jung. Ele reapareceu no fim da sua vida para expressar ouroboricamente o fim que já estava latente desde o início, o espírito mercurial das oposições cujo fogo serviu de combustível para sua opus.
Na época em que A função transcendente foi escrita, o coração de Jung vibrava sob o efeito do terremoto causado pela rachadura com Freud. Os anos que seguiram ao rompimento foram difíceis para Jung. Assolado pela incerteza e desorientação submeteu-se a um diálogo com o inconsciente e a todas as conseqüências que tal diálogo poderia trazer, inclusive a de um colapso psicótico.
O ensaio é uma tentativa de descrever o diálogo com o inconsciente. Sem esse diálogo não seria possível para Jung penetrar nas profundezas do desconhecido e retornar de lá com as preciosas descobertas sobre a atividade psíquica que preencheram as milhares de páginas que compõe a sua obra. Nessa época ele não havia formulado conceitos como arquétipo, si-mesmo, anima, animus, sombra, tipologia, aos quais dedicaria grande espaço em escritos posteriores. O que emergiu em 1916 foi o conceito de função transcendente, a prática do diálogo entre consciência e inconsciente através do qual a psique transforma a si mesma10.
Nos 42 anos que separam as duas versões, o problema de como chegar a um acordo com o inconsciente ainda era uma questão crucial para Jung. O ensaio sobre a função transcendente é o resultado prático-teórico da separação com Freud, do confronto com o inconsciente, e a primeira expressão do embate com o problema dos opostos que perpassará toda a sua obra até seus últimos escritos alquímicos. A importância maior desse período está no reconhecimento por parte de Jung da natureza teleológica do inconsciente, que além de ser o lugar do reprimido, também possui uma intenção, um propósito. Por este motivo, o caminho para o saber psicológico requer parceria entre a consciência e o inconsciente. Jung nomeou essa parceria de função transcendente.
Por “função transcendente” não se deve entender algo de misterioso e por assim dizer supra-sensível ou metafísico, mas uma função que, por sua natureza, pode-se comparar com uma função matemática de igual denominação, e é uma função de números reais e imaginários. A função psicológica e “transcendente” resulta da união dos conteúdos conscientes e inconscientes. A experiência no campo da psicologia analítica nos tem mostrado abundantemente que o consciente e o inconsciente raramente estão de acordo no que se refere a seus conteúdos e tendências. Esta falta de paralelismo, como nos ensina a experiência, não é meramente acidental ou sem propósito, mas se deve ao fato de que o inconsciente se comporta de maneira compensatória ou complementar em relação à consciência. Podemos inverter a formulação e dizer que a consciência se comporta de maneira compensatória com relação ao inconsciente11.
A idéia de oposição está no coração do pensamento de Jung, sendo quase um sinônimo de vida psíquica, visto que para ele os opostos são as inerradicáveis e indispensáveis precondições de toda a vida psíquica12. Jung atribui ao filósofo grego Heráclito a paternidade da idéia de oposição complementar.
O velho Heráclito, que era realmente um grande sábio, descobriu a mais fantástica de todas as leis da psicologia: a função reguladora dos contrários. Deu-lhe o nome de enantiodromia (correr em direção contrária), advertindo que um dia tudo reverte em seu contrário13.
Para Jung a oposição não era apenas a pré-condição indispensável para a vida psíquica, era também psicóide, uma lei da natureza a qual ele conecta à primeira lei da termodinâmica para qual toda energia é função de uma oposição.
Com o conceito de energia está formulado o conceito de contraste, visto que uma afluência energética requer necessariamente a existência de uma afluência oposta, quer dizer, dois estados distintos, sem o que uma afluência não pode ter, com efeito, uma efetivação concreta. Todo fenômeno energético (na realidade, todos os fenômenos o são) põe em destaque dois pólos opostos: princípio e fim, alto e baixo, quente e frio, antes e depois, origem e término, etc., ou seja, os pares antagônicos. A inseparabilidade do conceito de contraste também é inerente ao conceito de libido. Os símbolos da libido, de natureza mítica ou especulativa, estão representados, portanto, ou diretamente pelos contrastes ou decompõe-se, de maneira bastante imediata, em contrastes14.
A unidade dos opostos realizada pela função transcendente era de essencial importância na apreensão da realidade profunda que unia os aspectos individuais e coletivos da psique. A oposição não reside apenas na relação entre consciente e inconsciente, mas também entre introversão-extroversão, pensamento-sentimento, intuição-sensação, inconsciente pessoal-inconsciente coletivo, anima-animus, logos-eros, arquétipo em-si-imagem arquetípica, ego-si-mesmo, persona-animus/anima, sombra-ego, signo-símbolo, primeira metade da vida-segunda metade, causalidade-sincronicidade, método redutivo-método prospectivo, apenas para citar algumas.
Como a oposição não ocorre somente entre consciente e inconsciente, a função transcendente está presente em toda teoria junguiana, permeando a relação entre todos os principais conceitos, visto que ela é a manifestação do diálogo com o outro interno, essencial a qualquer mudança real de atitude. O grande legado de Freud foi que não somos mestres em nossa própria casa, por isso qualquer transformação requer um confronto com o desconhecido em nós mesmos. Uma mudança psicológica não depende apenas de um esforço subjetivista, controlado pelo ego, mas do reconhecimento de que o ego é apenas uma parte da totalidade psíquica.
A transformação psíquica operada pela função transcendente, atua através do símbolo, imagem que personifica a totalidade da situação psíquica. Ele é uma resposta inconsciente para uma problemática consciente. Para que ele atue é preciso que o ego não se identifique com nenhum dos pares de opostos, pois se tomar posição a favor de um, o outro é reprimido ou projetado. Se o ego reconhecer a total igualdade de direito de ambas as partes, produz-se uma paralisação da vontade, e o fluxo de libido regride ativando o inconsciente, fonte de todos os conteúdos diferenciados da consciência.
A atividade do inconsciente faz emergir um conteúdo em que se patenteia, em idêntica medida, o influxo da tese e da antítese, e que, em relação a ambas, conduz-se com efeitos compensatórios. Desde o começo em que esse conteúdo mostra suas relações tanto com a tese como com a antítese, constitui uma base intermediária em que os contrastes se podem conjugar. (...) Em seu conjunto, dou ao processo que acabo de descrever o nome de função transcendente. Mas, neste caso, não entendo como “função” uma função fundamental, mas o fato de que, em virtude dessa função, opera-se um trânsito entre uma e outra disposição. A matéria-prima trabalhada pela tese e antítese que em seu processo de conformação realiza a conjugação dos contrários é o símbolo vivo15.
Jung afirma que não há nada de misterioso ou metafísico na função transcendente. Contudo, em diversas passagens de sua obra um aroma metafísico parece brotar. Apesar de Jung negar, a aura divina irradiada na síntese dos opostos é visível a quem quer que a olhe.
(...) qualquer contraste pertence a Deus e por isso o homem deve tomá-lo sobre si; tão logo o faça, Deus se apossará dele, juntamente com a suas antinomias. O homem é, então, invadido pelo conflito divino. Não é sem fundamento que ligamos a idéia de sofrimento ao estado no qual os contrários se chocam dolorosamente, e temos receio de considerar uma experiência desta natureza como libertação. Entretanto, não podemos negar que o grande símbolo da fé cristã, a cruz, da qual pende a figura sofredora do Redentor, vem sendo exposto de forma impressionante aos olhos do cristão há quase dois mil anos. Este quadro é completado pela presença dos dois malfeitores, um dos quais desce ao inferno e o outro sobe ao paraíso. Não se pode representar melhor a antinomia do símbolo central do cristianismo do que desta forma16.
No ensaio sobre a função transcendente Jung afirma ser mais proveitoso trabalhar com a imaginação ativa do que com os sonhos, pois as imagens oníricas não constelam tensão suficiente para ativar a função transcendente. No entanto, em um outro escrito Jung afirma que os sonhos e visões também servem de matéria prima para a função transcendente.
Lidar com o inconsciente é um processo (ou, conforme o caso, um sofrimento ou um trabalho) cujo nome é função transcendente, porque representa uma função que, fundada em dados reais e imaginários ou racionais e irracionais, lança uma ponte sobre a brecha existente entre o consciente e o inconsciente. É um processo natural, uma manifestação de energia produzida pela tensão entre os contrários, formado por uma sucessão de processos de fantasia que surgem espontaneamente em sonhos e visões17.
Apesar de Jung não ter relacionado explicitamente o arquétipo da sombra com a função transcendente, a conexão implícita entre ambas é notória. Personificação dos elementos escuros e reprimidos que não estão em acordo com as normas sociais vigentes, a sombra é o primeiro degrau na descida ao inconsciente. Nenhum diálogo com o outro interno é completo sem o confronto com os aspectos sombrios não aceitos em nós e por isso reprimidos e/ou projetados. A sombra, uma manifestação arquetípica, é a personificação do outro instintivo, primitivo, amoral, interno a nós mesmos, e uma dentre as múltiplas formas possíveis de manifestação do inconsciente. Portanto, é um elemento essencial a ser integrado via função transcendente. Como os aspectos sombrios da psique jamais são integrados por completo a função transcendente atua de forma ininterrupta18.
Anima e animus também funcionam como personificação da função transcendente. Ambos compensam a estrutura de conformidade coletiva externa chamada por Jung de persona. Caso ocorra uma intensa identificação do ego com a persona, ele torna-se apenas um papel social coletivo, cindindo da vida interior.
O indivíduo tende a identificar-se com a máscara impelido pelo mundo, mas também por influências que atuam de dentro. “O alto ergue-se do profundo”, diz Lao-Tzé. É do íntimo que se impõe o lado contrário, tal como se o inconsciente oprimisse o eu com o mesmo poder que a persona exerce sobre ele. À falta de resistência exterior contra a sedução da persona, corresponde uma fraqueza interior relativa às influências do inconsciente. O papel desempenhado fora é atuante e forte, ao passo que dentro vai-se desenvolvendo uma fraqueza efeminada contra todas as influências do inconsciente: estados de espírito momentâneos, caprichos, angústias e uma sexualidade efeminada (que culmina na impotência) passam, pouco a pouco, para o primeiro plano. A persona, imagem ideal do homem tal como ele quer ser, é compensada interiormente pela fraqueza feminina; e assim como o indivíduo exteriormente faz o papel de homem forte, por dentro torna-se mulher, torna-se anima, e é esta que se opõe à persona. O íntimo é obscuro e invisível para a consciência extrovertida, principalmente para o indivíduo que tem dificuldade em reconhecer suas fraquezas, por haver-se identificado com a persona. Portanto, o contrário da persona – a anima – também permanece totalmente no escuro e se projeta. (...) É importante para a meta de individuação, isto é, da realização do si-mesmo, que o indivíduo aprenda a distinguir entre o que parece ser para si mesmo e o que é para os outros. É igualmente necessário que conscientize seu invisível sistema de relações com inconsciente, ou seja, com a anima, a fim de poder diferenciar-se dela19.
Assim, anima e animus personificam o outro interno reprimido e por isso nos parecem tão misteriosos e ameaçadores. São símbolos da própria existência do inconsciente, e como tal intermediam as relações com a consciência, do mesmo modo como a persona intermedia as relações com o mundo social. “O animus não pertence à função de relação consciente; sua função é a de possibilitar a relação com o inconsciente”20. No papel de mediadores são essenciais no processo de integrar elementos cindidos da psique. A ligação entre os arquétipos da sizígia e a função transcendente é clara.
Por um lado, o inconsciente é um processo puramente natural, sem objetivo; mas por outro lado tem o endereçamento potencial, típico de todo processo energético. Quando a consciência desempenha uma parte ativa e experimenta cada estádio do processo, compreendendo-o pelo menos intuitivamente, então a imagem seguinte sempre ascenderá a um estágio superior, constituindo-se assim finalidade da meta. A meta seguinte da confrontação com o inconsciente é alcançar um estado em que os conteúdos inconscientes não permaneçam como tais e não continuem a exprimir-se indiretamente como fenômenos da anima e do animus, mas se tornem uma função de relação com o inconsciente21.
Para Jung anima e animus devem ser levados a sério como manifestações da atividade psíquica. Na medida em que dialogamos com estas personificações elas revelam seus conteúdos e intenções que, ao serem clarificados, dissolvem-se em uma função de relação com o inconsciente. A dissolução das imagens personificadas da anima e do animus impedem que eles funcionem em completa autonomia , apossando-se do ego.
Essas duas figuras crepusculares do fundo obscuro da psique, a anima e o animus (verdadeiros e semigrotescos “guardadores do umbral”, para usar o pomposo vocabulário teosófico), podem assumir numerosos aspectos, que encheriam volumes inteiros. Suas complicações e transformações são ricas como o próprio mundo, e tão extensas como a variedade incalculável do seu correlato consciente, a persona. Habitam uma esfera de penumbra, e dificilmente percebemos que ambos, anima e animus, são complexos autônomos que constituem uma função psicológica do homem e da mulher. Sua autonomia e falta de desenvolvimento ursupa, ou melhor, retém o pleno desabrochar de uma personalidade. Entretanto, já podemos antever a possibilidade de destruir sua personificação, pois conscientizando-os podemos convertê-los em pontes que nos conduzem ao inconsciente. Se não os utilizarmos intencionalmente como funções, continuarão a ser complexos personificados e nesse estado terão que ser reconhecidos como personalidades relativamente independentes22.
O trabalho contínuo com a anima e o a animus é uma operação da função transcendente, uma das múltiplas formas através das quais ela atua.
O problema dos opostos também está presente em todos os estudos alquímicos que marcaram a última fase da obra de Jung. Vistos por Jung como ancestrais dos psicólogos, os alquimistas estavam envolvidos com Mercúrio, o espírito divino aprisionado na matéria, cujas características foram resumidas por Jung em um estudo apresentado em 1942.
1) Mercúrius consiste em todos os opostos possíveis e imagináveis. Ele é uma dualidade manifesta, sempre porém designada como unidade, se bem que suas oposições internas possam apartar-se dramaticamente em figuras diversas e aparentemente autônomas.
2) Ele é físico e espiritual.
3) Ele é o processo de transformação do plano físico, inferior, no plano superior e espiritual, e vice-versa.
4) Ele é o diabo, o salvador que indica o caminho, um “trickster” evasivo, a divindade tal como se configura na natureza materna.
5) Ele é a imagem especular de uma vivência mística do artifex, a qual coincide com a opus alchymicum (obra alquímica).
6) Enquanto vivência acima referida, ele representa, por um lado, o si-mesmo e, por outro, o processo de individuação e também o inconsciente coletivo, devido ao caráter ilimitado de suas determinações23.
Os itens 2,3,4,5,6 são desdobramentos do item 1, do Mercúrius como personificação de todos os opostos possíveis e imagináveis, o que significa que os conceitos de inconsciente coletivo, individuação e si-mesmo se fundamentam na complementaridade dos opostos.
A função transcendente é de suma importância no diálogo entre o ego e as imagens arquetípicas do inconsciente coletivo, reunindo-as como partes de um todo maior que as integram e as transcendem. A função transcendente e os arquétipos seriam diferentes expressões de uma só e mesma coisa, o diálogo entre o consciente e o inconsciente.
Enquanto o inconsciente coletivo, indiferenciado, ficar acoplado à psique individual, nenhum progresso se fará ... Mas quando concebemos as figuras do inconsciente como fenômenos ou funções da psique coletiva, não entramos em contradição com a consciência intelectual. É uma solução racionalmente aceitável. Com isso adquirimos também a possibilidade de lidar com os resíduos ativados da nossa história antropológica, o que permitirá que se transponha a linha divisória anteriormente existente. Por isso chamei-lhe função transcendente, porque equivale a uma evolução progressiva para uma nova atitude24.
A diferença é que a função transcendente é a expressão desse diálogo em forma processual, enquanto os arquétipos seriam as expressões personificadas desse diálogo. Logo em qualquer contato com uma imagem arquetípica existe o potencial para a ação da função transcendente, e onde quer que a função transcendente atue, a consciência está de alguma forma interagindo com material arquetípico25.
Quando Jung escreveu o ensaio sobre a função transcendente pela primeira vez ele não havia elaborado totalmente a teoria dos arquétipos. Nesta época o que estava em primeiro plano era que tanto o consciente como o inconsciente precisavam reconhecer o papel ativo que cada um desempenhava na atividade psíquica. O conceito de arquétipo surgiu bem mais tarde, funcionando como uma objetificação da parte inconsciente do diálogo com a consciência. As imagens arquetípicas seriam assim, uma das múltiplas personificações da operação da função transcendente26.
Para diferenciar-se da abordagem freudiana, que buscava explicações para psicopatologia em causas no passado, em traumas infantis, Jung buscou integrar a visão freudiana numa abordagem mais ampla, onde o passado presentificado tem um propósito mais amplo além da pura descarga de impulsos reprimidos. Jung nomeou esse aspecto teleológico da vida psíquica de processo de individuação e a abordagem que lida com ele de prospectiva. Na época em que escreveu o primeiro ensaio sobre a função transcendente ele ainda não tinha desenvolvido uma visão abrangente desse processo. Em escritos posteriores a relação entre a função transcendente, as mudanças trazidas por ela e o processo de individuação estão bem mais delineadas.
É claro que esta modificação da personalidade não corresponde a uma alteração da predisposição hereditária do indivíduo, mas representa uma transformação da atitude geral. As separações drásticas e oposições entre o consciente e o inconsciente, tão evidentes nas naturezas neuróticas e carregadas de conflitos, dependem quase sempre de uma unilateralidade acentuada da atitude consciente, que prefere de modo absoluto uma das duas funções, relegando as outras indevidamente para o segundo plano. A conscientização e vivência das fantasias determinam a assimilação das funções inferiores e inconscientes à consciência, causando efeitos profundos sobre a atitude consciente. Não discutirei agora em seus pormenores a forma desta mudança da personalidade. Quero sublinhar apenas o fato de que se trata de uma mudança essencial. Dei o nome de função transcendente a esta mudança obtida através do confronto com o inconsciente. A singular capacidade de transformação da alma humana, que se exprime na função transcendente, é o objeto principal da filosofia alquimista da baixa Idade Média. Essa filosofia representa tal capacidade anímica pela conhecida simbologia alquimista. (...) Houve uma filosofia “alquímica” precursora vacilante da moderna psicologia. Seu segredo é a “função transcendente” e a transformação da personalidade através da mistura e fusão de elementos nobres e vulgares, das funções diferenciadas e inferiores do consciente e do inconsciente27.
A psique, longe de ser um mero agregado de emoções, impulsos, complexos, e comportamentos díspares, é uma totalidade viva em busca de uma integração cada vez maior entre os seus componentes, algo impossível de ser realizado sem a superação dos opostos, dos aspectos mutuamente excludentes.
Voltando agora ao problema da individuação, sentimo-nos diante de uma tarefa invulgar: a psique é constituída de duas metades incongruentes que, juntas, deveriam formar um todo. (...) Consciência e inconsciente não constituem uma totalidade, quando um é reprimido e prejudicado pelo outro. Se eles têm de combater-se, que se trate pelo menos de um combate honesto, com o mesmo direito de ambos os lados. Ambos são aspectos da vida. A consciência deveria defender sua razão e suas possibilidades de autoproteção, e a vida caótica do inconsciente também deveria ter a possibilidade de seguir o seu caminho, na medida em que o suportamos. Isto significa combate aberto e colaboração aberta ao mesmo tempo. Assim deveria ser evidentemente a vida humana. É o velho jogo do martelo e da bigorna. O ferro que padece entre ambos é forjado num todo indestrutível, isto é, num individuum. É aproximadamente a isso que denomino “processo de individuação”. Como o nome sugere, trata-se de um processo ou percurso de desenvolvimento produzido pelo conflito de duas realidades anímicas fundamentais28.
Individuação é processo, movimento, por isso a função transcendente atua de forma constante sobre os seus próprios resultados. Esse processo resulta em integrações cada vez mais diferenciadas e complexas, e é motivado pelo si-mesmo, o arquétipo da totalidade, o centro da psique, que por representar o potencial de integração de toda a personalidade é a imagem de deus na psique. O si-mesmo é o motor do processo de individuação, estando completamente imbricado com a função transcendente. No prefácio da publicação em 1959 da versão de 1916 do ensaio sobre a função transcendente, James Hillman escreveu: “O termo ‘função transcendente’, usado aqui para a união do consciente e do inconsciente, não está muito em uso atualmente, tendo sido substituído em um sentido amplo pelo conceito de Si-Mesmo”29.
Em uma carta escrita por Jung em 10.04.1954 ao padre Victor White, é visível a sobreposição do conceito de si-mesmo e de função transcendente, visto que ambos se referem a uma totalidade que se expressa por meio da oposição complementar. “No começo, a compensação é um conflito infernal, mas, depois, quando se compreende o sentido de ‘nirdvanda’, torna-se ela os pilares da porta da função transcendental, isto é, da passagem para o si-mesmo”30.
O si-mesmo seria então uma espécie de refinamento do conceito de função transcendente. Como potencial de integração adormecido nas profundezas inconscientes da psique, o si-mesmo instiga a busca da unidade e a função transcendente é a sua atividade espontânea. Ele é o gatilho que ativa a operação da função transcendente, sendo não só o iniciador, mas também o objetivo final do processo de individuação, a atualização constante do potencial divino de integração dos aspectos excludentes da psique. “Ainda que o si-mesmo seja minha origem, ele é também a meta de minha busca”31.
A individuação seria então um movimento circular, ourobórico, onde o si-mesmo, que no começo é um potencial adormecido sem nenhum conteúdo, é despertado quando aspectos mutuamente excludentes ameaçam rasgar o ego ao meio. Despertado pela tensão energética, o si-mesmo presentifica-se sob a forma da função transcendente e o que no começo era uma unidade vazia e indeterminada transforma-se numa unidade complexa e diferenciada, rica em conteúdos. Essa constante atualização do si-mesmo é o que se chama de processo de individuação.
A operação da função transcendente possui semelhanças explícitas com a trindade cristã, que exerceu um papel primordial no pensamento do jovem Jung ao plantar as sementes da dúvida que o impeliram a buscar respostas fora do dogmatismo comumente aceito. Ela foi alvo de um extenso estudo que se inicia através de paralelos estabelecido com motivos semelhantes em outras culturas. Jung inicia o seu estudo sobre a trindade estabelecendo paralelos entre a trindade cristã e as tríades existentes em diversas mitologias. Entre elas a egípcia é de especial semelhança, provavelmente tendo servido de inspiração para os cristãos. Entre o deus pai e o filho representado pelo faraó egípcio havia um terceiro elemento expressando a unidade de essência que havia entre eles, o ka, a força procriadora divina. Enquanto nas outras tríades haviam três figuras unidas por uma relação de parentesco, no Egito o ka assegurava a identidade essencial entre o deus pai e o seu filho faraó, que por isso era a manifestação terrena do deus. A trindade cristã também possui paralelos com o simbolismo numérico grego. Para os pitagóricos a unidade não é ainda um número e sim o primeiro elemento geral do qual surgiram todos os outros. O 2 é o primeiro número, nele começa a separação, a multiplicação e o processo de contar. O 3 é o primeiro número ímpar e também perfeito pois nele aparece pela primeira vez um começo, um meio e um fim.
Este foi o motivo pelo qual um alquimista da Idade Média argumentava que Deus não louvou o segundo dia da criação, visto que nesse dia (uma segunda-feira – dies lunae) surgiu o binarius, ou melhor, o diabo (enquanto número dois, ou “aquele que duvida”). O número dois pressupõe a presença do número um, do uno; e o número um não é mais do que o uno diminuído e transformado em “número”, por causa da divisão. O “uno” e o “outro” formam um par de contrários, o que não acontece com o um e o dois, pois estes constituem simples números, e só se distinguem entre si exclusivamente por seu valor aritmético. O “uno”, porém, sempre tende a manter sua unicidade e seu isolamento, ao passo que a tendência do “outro” é ser justamente “outro” em relação ao uno. O uno não pretende exonerar o outro, senão perderia seu caráter próprio, enquanto o outro se destaca do uno, simplesmente para perdurar. Daí resulta uma tensão antitética entre o uno e o outro. Qualquer tensão deste tipo, porém, leva a uma espécie de evolução, da qual resulta o terceiro termo. Com a presença do terceiro termo, desfaz-se a tensão e reaparece o uno perdido. O uno absoluto não entra no processo de numeração, nem pode ser objeto de conhecimento. Só pode ser conhecido a partir do momento em que aparece no um, pois no estágio de “uno” falta o “outro” exigido para estas operações. A tríade é, portanto, uma espécie de desdobramento do uno, e sua transformação num conjunto cognoscível. O três é o uno que se tornou cognoscível e que, não havendo a resolução da antítese entre o “uno” e o “outro”, permaneceria num estado de absoluta indeterminação. Por isso, o três comparece como um verdadeiro sinônimo de processo de desenvolvimento dentro do tempo, disso resultando um paralelo com a auto-revelação de Deus como uno absoluto, no desdobramento do três32.
O mundo, o homem, e a divindade são originalmente um todo não perturbado pela crítica. Este é o mundo do pai e do homem em estado infantil. Não havia ainda a clássica pergunta sobre a origem do mal, da existência, da dor e da morte. Quando essas perguntas são levadas a sério inicia-se o processo de reflexão, o julgamento da revelação do pai pelas suas obras com a conseqüente quebra da unidade original. Essa reflexão crítica inicia o mundo do filho sendo na verdade ele que estabelece o pai como pai, visto que alguém só é pai para um filho. A unidade original não era algo determinável, não podendo por isso ser chamada de pai33.
O espírito santo é como o ka, uma força procriadora, uma potência vital hipostasiada que materializa na forma de um filho a realidade espiritual do pai. O pai e o filho se acham unidos numa só e mesma obra ou poder procriador. Na Bíblia ele fecunda Maria na forma de uma pomba, e após a morte de Jesus ele desce sobre os apóstolos como inúmeras línguas de fogo. O fogo e o ar eram formas comuns de manifestação do espírito, mas alguns enxergavam no espírito santo uma relação amorosa ou, como os primeiros cristãos gnósticos, a mãe geradora. O problema de identificar o espírito santo com a mãe de Cristo é que isso pode naturalizar algo que é essencialmente contra naturam, aprisionando o nascimento espiritual de Cristo numa imagem natural de família, pai-mãe-filho.
Realmente, é de máxima importância que a idéia do Espírito Santo não constitua uma imagem natural, mas sim um conhecimento, um conceito abstrato da vida do Pai e do Filho, como terceiro elemento existente entre o Uno e o Outro. A vida sempre extrai da tensão da dualidade um terceiro elemento desproporcional e paradoxal. Por isso, na sua qualidade de “tertium” o Espírito Santo é necessariamente desproporcional e paradoxal. Ao contrário do Pai e do Filho, ele não tem um “nome” especial, nem caráter definido. É uma função e, como tal, é a terceira pessoa da divindade34.
Jung considerava a trindade uma totalidade incompleta que necessitava do acréscimo de um quarto termo. Ele começa seu questionamento do terceiro a partir do Timeu platônico, afirmando que a união de um único par de contrários conduz a uma tríade bidimensional que não é ainda uma realidade corpórea, somente algo imaginado, o que torna necessário dois pares de contrários para representar uma realidade corpórea. No Timeu os dois pares eram representados pelos quatro elementos: ar, terra, água e fogo. Para Jung a passagem do 3 para o 4 é a passagem do imaginado para o real. O quarto termo traz o questionamento do problema do mal e da realidade, e o cristianismo ao excluir de Cristo o impulso instintivo característico da realidade corpórea, torna questionável até que ponto o cordeiro de deus era realmente a união da carne e do espírito35.
No monoteísmo tudo que se opõe a deus não pode vir de outro lugar senão dele mesmo, mas o choque causado por essa afirmação é a razão pela qual o diabo não encontrou acolhida no seio da divindade, tendo sido reduzido a uma privatio boni, mera falta de luz, quando deveria ocupar uma posição antinômica correspondente ao seu status de adversário de Cristo e ser também filho de deus, o quarto elemento da trindade36.
A negação demoníaca contrapõe-se ao ato de amor representado pelo Cristo e o fato de Satã ter sido reconhecido como adversário do filho divino transparece sua autonomia ao ponto de alguns gnósticos terem feito de Satanael o primogênito que tinha Cristo como irmão caçula. O poder do mal foi suficientemente forte para que a própria divindade encarnasse no mundo e se sacrificasse na cruz37.
Por isso convém ter presente que a Cruz representa precisamente o conflito entre Cristo e o Diabo, e foi por este motivo levantada exatamente no centro do universo, entre o Céu e o Inferno, correspondendo à quaternidade. (...) A matéria, com efeito, é o extremo oposto do espírito. É verdadeiramente a morada do Diabo, que tem o seu inferno e o fogo da sua fornalha no interior da terra, ao passo que o espírito luminoso paira no éter, livre das cadeias da gravidade terrestre. (...) Por esta razão é que o Adversário foi imaginado de algum modo, logicamente, como a alma da matéria, pois esta, do mesmo modo que o Diabo, representa aquela oposição dos contrários sem a qual é simplesmente impensável a autonomia da existência individual. O Diabo se caracteriza pela sua oposição e pelo fato de querer sempre o contrário, do mesmo modo que a desobediência caracteriza o Pecado Original. Como já foi dito, são estes os dois pressupostos da obra da criação e portanto deveriam estar inscritos no plano divino e incluídos na esfera do divino38.
A duplicidade de deus não era estranha à especulação religiosa tendo sido expressa em inúmeras imagens, como a do unicórnio, um animal colérico associado ao lado vingativo de deus que largou o mundo na desordem como punição pelo pecado original. Essa irascibilidade foi aplacada graças à habitação no ventre da virgem que abrandou a cólera vingativa tão visível nos textos do velho testamento. Através do feminino deus conheceu o amor39. Essa dualidade é intrínseca ao símbolo que personifica a própria era cristã, conhecida como a era de peixes. No simbolismo astrológico o signo aparece como uma figura com dois peixes nadando em direções contrárias ligados por uma linha. Jung percebeu nessa imagem a união de dois movimentos contrários, um ascendente-espiritualizante, outro descendente-materializante. A primeira metade dos dois mil anos da era de peixes presenciaram a predominância do movimento ascendente, enquanto a segunda caracterizou-se pelo florescimento de tudo aquilo que havia permanecido à sombra de Cristo, sendo por isso a era do Anti-Cristo, o peixe que nada nas profundezas ctônicas40. A segunda metade marca o retorno do feminino, da matéria excluída da trindade. A igreja não foi insensível a essa dinâmica, ensaiando um acréscimo do feminino à trindade na forma da assunção de Maria41.
O dilema entre a trindade e a quaternidade na obra de Jung parece ter se resolvido na clara preferência pela quaternidade. Mas se olharmos atentamente os seus escritos a solução não parece ser assim tão satisfatória. Seu exame da trindade a revelou como um processo suficiente e completo por si mesmo, sem a necessidade do acréscimo de um quarto termo. No começo predomina o estado infantil, a unidade originária com o todo da natureza sem espaço para julgamentos críticos ou conflitos morais. Quando estes surgem, inicia-se o mundo do filho, repleto de ansiedade pela redenção do estado de perfeição unitária, aparentemente perdido para sempre devido à intensificação irreversível da consciência que presenteou o homem com a independência ao mesmo tempo em que o amaldiçoou com a outra face da liberdade, a angústia da separação. O terceiro estágio, o do espírito santo, traz a redenção ao reunir a parte e o todo sem que isso signifique um retorno ao estado infantil e irrefletido. O estágio da unidade é negado no estágio da divisão, que por sua vez é negado no terceiro estágio da reunião. O terceiro não só nega, mas conserva os dois primeiros numa unidade mais ampla e complexa. Esse processo é uma descrição apurada da função transcendente, não havendo um quarto elemento.
Jung fala que a trindade expressava uma totalidade apenas imaginada, não existente na realidade concreta. Mas em outras passagens ele afirmou que a imaginação era o terceiro elemento que resolvia a oposição excludente entre o intelecto e a matéria.
Ao esse in intellectu falta a realidade palpável, ao esse in re falta o espírito. Ora, a idéia e a coisa encontram-se na psique do homem, a qual estabelece o equilíbrio entre idéia e coisa. No fim de contas, o que é a idéia, se a psique não lhe facultar um valor vital? Que é a coisa objetiva, se a psique a privar da força condicional da impressão sensível? E o que é a realidade senão uma realidade em nós próprios, um esse in anima? A realidade vital não é dada exclusivamente pelo comportamento efetivo, objetivo, das coisas, nem pela fórmula ideal, mas em conseqüência de uma conjugação desse comportamento e dessa fórmula, dentro do processo psicológico vital, graças ao esse in anima. Só por meio da atividade vital específica da psique a percepção sensível atinge a profundidade impressiva e a idéia de força eficiente que são parte integrante e indispensável de uma realidade vital. A atividade própria da psique, que não pode explicar-se por uma reação reflexa à excitação dos sentidos (estímulo sensorial) nem considerando-a o órgão executivo de idéias eternas, é, como todos os processos vitais, um contínuo ato criador. A psique cria diariamente a realidade. Só encontro uma expressão para designar essa realidade: a fantasia. A fantasia tanto é sentir como pensar, tanto é intuitiva como perceptiva. Não há função psíquica que não se encontre nela, em associação indiferenciável com as demais funções psíquicas. Tão depressa se apresenta com caráter primordial como sob o aspecto de produto final e temerário da concentração de todas as capacidades. Por isso a fantasia me parece ser a mais clara expressão da atividade psíquica específica. É, sobretudo, a atividade criadora que procura uma resposta para todas as indagações contestáveis, a mãe de todas as possibilidades, na qual se encontram vitalmente vinculados, como todos os extremos psicológicos, tanto o mundo interior como o exterior. A fantasia sempre foi e continua sendo o elemento que serviu de ponte entre os requisitos irreconciliáveis de objeto e sujeito, de extroversão e introversão. Só na fantasia se encontram unidos ambos os mecanismos42.
A própria concepção de símbolo por ele defendida o caracterizava como o terceiro excluído que unia os opostos.
O alternar-se de argumentos e de afetos forma a função transcendente dos opostos. A confrontação entre as posições contrárias gera uma tensão carregada de energia que produz algo de vivo, um terceiro elemento que não é um aborto lógico, consoante o princípio: tertium non datur [não há um terceiro integrante], mas um deslocamento a partir da suspensão entre os opostos e que leva a um novo nível de ser, a uma nova situação. A função transcendente aparece como uma das propriedades características dos opostos aproximados. Enquanto estes são mantidos afastados um do outro – evidentemente para se evitar conflitos – eles não funcionam e continuam inertes43.
O 3 é um símbolo de uma totalidade temporal, processual, onde o terceiro restaura a unidade original em um nível mais elevado. Essa nova unidade é perturbada pela emergência de uma nova oposição que reinicia o ciclo. Seguindo a afirmação junguiana de que o ritmo é um andamento ternário, mas o símbolo resultante é um quaternidade, Edinger considera a quaternidade um símbolo onde o todo não é um movimento dinâmico e sim uma eternidade estática. Enquanto o 3 é processo o 4 é estrutura. O próprio tempo se desenvolve segundo um ritmo ternário onde o passado torna-se presente que por sua vez caminha para o futuro. O todo quaternário, enquanto estrutura estática, fornece uma orientação estabilizadora, como ocorre com as mandalas utilizadas como instrumentos de meditação.
Imagens quaternárias, de mandala, emergem em períodos de turbulência psíquica, e trazem consigo um sentimento de estabilidade e de repouso. A imagem da natureza quaternária da psique fornece uma orientação estabilizadora. Ela nos traz um vislumbre da eternidade estática. As mandalas do Budismo Tibetano são usadas com esse propósito. São instrumentos de meditação que trazem à conscência um sentimento de paz e de calma, como se o indivíduo estivesse seguramente apoiado na substância estrutural eterna e protegido dos perigos da mudança. Os pacientes da psicoterapia às vezes descobrem por si mesmos esse método de meditação a respeito de seus próprios desenhos de mandalas quando sua integridade psíquica corre perigo44.
Ao vincular a trindade ao tempo Edinguer inverte a posição de Jung que considerava o 4 mais concretamente enraizado na realidade que o 3. Como processo dinâmico-temporal, o 3 é algo bem mais concreto que uma totalidade eterna e imutável. A trindade simboliza a individuação como um processo, enquanto a quaternidade seria o alvo do processo, a completude advinda da sua finalização. Como esse processo jamais se completa, cada estágio temporário de completude deve submeter-se à dinâmica trinitária para que a vida não se paralise45.
IMAGINAÇÃO E ANIMA
O primeiro uso do termo arquétipo na obra junguiana ocorreu em 1919 no simpósio intitulado O Instinto e o Inconsciente. Enquanto o instinto compele as ações especificamente humanas, os arquétipos influenciam a compreensão, organizando-a em formas comuns a toda espécie. Juntos eles compõe o inconsciente coletivo que precede a formação do inconsciente pessoal. O arquétipo funciona para a psique como o instinto funciona para o corpo. A psique possui seus instintos, os arquétipos, e por meio desse conceito Jung tenta curar a ferida moderna que dissocia mente e corpo.
Os instintos e os arquétipos só podem ser conhecidos por meio de imagens que os presentificam em suas ausências, tornando cognoscível o incognoscível ao conectar a consciência à dimensão psicóide ao mesmo tempo em que a separa dela. Caso a consciência se identificasse com o psicóide, deixaria de ser consciência, visto que ela se constitui por meio da separação dos opostos, enquanto no psicóide predomina o unus mundus. Desse modo a imagem compõe-se de uma condensação de oposições, representando o instinto e o arquétipo para consciência ao mesmo tempo em que a protege de ser possuída por eles ao unir a infravermelhidão de um ao azul celestial do outro, inibindo o extremismo de uma posição através da outra.
A imagem é corporal e espiritual, sendo o símbolo originado a partir da função transcendente que unifica tese e antítese, psiquizando os arquétipos e instintos psicóides. Essa qualidade conciliadora da imagem que a permite transcender o abismo entre os opostos, entre idéia e coisa, interior e exterior, objetividade e subjetividade, lhe dá um estatuto central na obra junguiana.
A qualidade arquetípica de uma imagem, que a define como imagem no sentido estritamente junguiano do termo, identifica-se com seu potencial simbólico de transcender a lógica racional excludente, unindo o que para ela não pode ser unido. Imaginação é então um outro nome para a operação da função transcendente, ou melhor, é a própria função transcendente funcionando numa forma personificada. Jung considerava imagem e psique como sinônimas, e poderíamos ir mais longe afirmando que a imagem psíquica tem como característica intrínseca ser símbolo, que é o meio através do qual atua a função transcendente.
A função transcendente reúne os opostos graças à atividade do inconsciente que gera um terceiro termo no qual tese e antítese alcançam sua síntese. A consciência não consegue por si só realizar a coniunctio já que sua atividade é essencialmente discriminadora, sendo considerada por Jung sinônimo de logos.
Não existe consciência sem diferenciação de opostos. É o princípio paterno do Logos que, em luta interminável, se desvencilha do calor e da escuridão primordiais do colo materno, ou seja, da inconsciência. Sem temer qualquer conflito, qualquer sofrimento, qualquer pecado, a curiosidade divina almeja por nascer. A inconsciência é o pecado primeiro, o próprio mal para o Logos. (...) Nem o princípio materno nem o paterno podem existir sem o seu oposto, pois ambos eram um só no início e tornar-se-ão um só no fim. A consciência só pode existir através do permanente reconhecimento e respeito pelo inconsciente: toda vida tem que passar por muitas mortes46.
A face revelada pelo inconsciente compensa a orientação dominante da consciência. “Sabe-se que a máscara do inconsciente não é rígida, mas reflete o rosto que voltamos para ele”47. Mas se um é masculino e o outro feminino, então a situação se inverte na mulher, pois sua consciência seria regida por eros e não pelo logos.
O erro da nossa formulação consiste primeiro em termos colocado a Lua simplesmente em lugar do inconsciente, quando isso vale sobretudo para o inconsciente do homem; segundo, em termos deixado de considerar que a Lua não é apenas sombria, quando ela é também um corpo que fornece luz ou, em outras palavras, que ela também pode representar a consciência. Este último é então o caso das mulheres: a consciência da mulher em certo sentido tem mais caráter de Lua do que de Sol. Sua “luz” é a luz mais suave da lua, que antes une do que distingue. Ela não faz, à maneira da luz forte e deslumbrante do Sol, com que os objetos deste mundo, os quais não devem ser confundidos entre si, apareçam naquela forma inexoravelmente distinta e separada, mas reúne muito mais o que está perto e o que está longe em uma aparência enganadora, transforma por suas artes mágicas o pequeno no grande e o elevado no baixo, dilui as cores em um azulado crepuscular e reúne a paisagem noturna em uma unidade jamais suspeitada. Partindo de considerações puramente psicológicas, tentei em diversos outros lugares caracterizar a consciência masculina por meio do conceito de Logos e a feminina por meio de Eros. Nessa tarefa procurei entender por “Logos” o distinguir, o julgar, o reconhecer, e por “Eros” o colocar-em-relação (relacionar). Se a fórmula da natureza lunar para a consciência feminina puder ser justificada – diante do consensus omnium a respeito disso, seria difícil imaginar que fosse diferente – então também se deveria tirar daí a conclusão que sua consciência é de natureza mais obscura, por assim dizer noturna, e que ela decerto, graças a essa iluminação mais parca, pode deixar de considerar certas distinções nas quais a consciência masculina no máximo ainda tropeça. Requer-se verdadeiramente uma consciência de natureza lunar para passar por cima de tudo o que separa e, por ex., unir uma grande família, falando e agindo de tal modo que não prejudique o relacionamento harmônico da partes para com o todo, e até mesmo o promova. E onde houver um fosso por demais profundo, aí um raio de luar produz a ilusão de que ele não existe48.
Na mulher a função transcendente atuaria na forma inversa àquela descrita por Jung, pois ao operar a síntese entre consciência e inconsciente, o segundo traria à tona o logos que racha ao meio o que aparece unido na consciência. Se o logos separa o que eros uniu, então a função transcendente é não só uma operação de síntese que atua sob o poder de eros, como também uma ação discriminadora graças ao brilho da lâmina do logos.
Na época de Jung, a persona social era bem mais rígida e os papéis masculinos e femininos eram claramente diferenciados e definidos, estando sob o julgo do logos patriarcal. Hoje, com o retorno de eros da inconsciência, os papéis se misturam de forma que sol e lua, logos e eros, não podem ser mais literalizados como homem e mulher. Masculino e feminino revelam-se como personificações da função transcendente em seu trabalho de unir o que aparece separado e separar o que aparece unido.
Isso nos leva a questionar se a função transcendente recebeu um tratamento adequado na obra de Jung, visto que foi descrita predominantemente na perspectiva da anima, como uma resolução da cisão causada pela lógica racional excludente através do eros irracional inconsciente. Mas o animus também compõe a função transcendente, o que faz dela não só a unidade-na-diferença como também a diferença-na-unidade, não só psique como também logos. A função transcendente é então psico-logia, não só síntese como também separação dos opostos.
Em Mysterium Coniunctionis, seu último grande trabalho, Jung mergulhou nas profundezas da sizígia estabelecendo a alquimia como o antepassado histórico por excelência da sua práxis psicológica. A explosão de imagens atordoa o leitor desavisado, pois a rica linguagem imagética era considerada por Jung mais adequada na expressão da realidade inconsciente.
O mitologema definido-indefinido e o símbolo ofuscante expressam o processo anímico de forma muito mais precisa, perfeita e portanto infinitamente mais clara do que o conceito nítido; pois o símbolo transmite uma visualização do processo, o que por certo é tão importante quanto uma vivência imediata ou posterior do processo. Essa penumbra só pode ser compreendida mediante uma empatia inofensiva e nunca mediante o expediente rude da clareza49.
Mas de que inconsciente Jung está falando, do masculino ou do feminino? Enquanto a anima está em casa no reino da imaginação, o animus se move no campo das idéias filosóficas, o lugar por excelência do logos. A preferência de Jung pela linguagem mitopoética mostra o quanto seu conceito de inconsciente foi colorido pela anima. A razão lógico-conceitual era, na época de Jung, uma prerrogativa masculina e sua ascensão e refinamento andou de mãos dadas com a disseminação da dominação patriarcal. A consciência mitopoética sofreu uma negação intensa tendo sido identificada com o feminino, pois ambos foram violentamente reprimidos ao ponto de terem sido igualados ao próprio inconsciente.
O inconsciente coletivo, o reino da grande mãe, é uma forma de consciência negada pela consciência coletiva, o reino masculino do herói. A grande questão da psicologia junguiana é o casamento da razão lógico-solar e da imaginação mítico-lunar. A anima recebeu a cota de atenção merecida por Jung, cujo trabalho de resgate da imaginação mitopoética foi um passo importantíssimo no caminho para integridade da consciência. E quanto ao animus? Olhando para a obra de Jung como um todo, não se vê o mesmo grau de compromisso com a razão conceitual que foi dedicada a anima. Mas se a opus magnum é o casamento alquímico do rei sol e da rainha lua, então uma real psico-logia não pode privilegiar apenas uma metade do par, o que nos leva a perguntar: qual a lógica da práxis junguiana? A resposta é clara para qualquer um que se aventure na tradição histórica do logos, pois entre os diversos tratamentos que ele recebeu ao longo dos séculos, nenhum é mais próximo da alquimia junguiana do que a grande corrente dialética, cujos elos incluem Heráclito, Sócrates, Platão, Plotino, Hegel, Marx, entre muitos outros. Toda essa tradição gira em torno da unidade dos opostos, descrita, não em uma linguagem mitopoética, mas na forma lógica da razão conceitual. Assim como Jung retornou aos mitos e à alquimia para resgatar a anima esquecida pela consciência coletiva, todo aquele que aceitar o desafio de levar a opus junguiana adiante, terá de retornar à tradição histórica do animus, para explicitar aquilo que ficou implícito na sizígia junguiana. O caminho foi aberto pelo próprio Jung, cabendo a nós percorrê-lo sem reservas, com toda a dedicação que ele exige.
andre.mercurio@hotmail.com
NOTAS
1.Trecho do livro PSICOLOGIA DIALÉTICA: UMA CRÍTICA INTERNA À PSICOLOGIA JUNGUIANA, escrito pelo autor e disponível em http://clubedeautores.com.br/book/3630--Psicologia_Dialetica
2. JUNG.CG, Memórias, Sonhos e Reflexões, p.136. Rio de Janeiro: Editora Nova Foronteira.
3.JUNG.CG, ibid, p.136.
4.JUNG.CG, ibid, p.137
5.JUNG.CG, ibid, pp.137-138.
6.JUNG.CG, ibid, pp.138-139.
7.JUNG.CG, ibid, pp.139-140.
8.JUNG.CG, ibid, p.150.
9.JUNG.CG, ibid, p.194.
10.MILLER.J, The Transcendent Function. Albany: State University of New York
11.JUNG.CG, A Natureza da Pisque, Obras Completas Vol VIII/2,p. 1. Petrópolis: Editora Vozes,1984.
12.JUNG.CG, Mysterium Coniunctionis, Obras Completas Vol XIV/1. Petrópolis: Editora Vozes, 1985.
13.JUNG.CG, Estudos Sobre Psicologia Analítica,Obras Completas Vol VII, pp. 64-65. Petrópolis: Editora Vozes,1981.
14.JUNG.CG,Tipos Piscológicos, p.244. Rio de Janeiro: Editora Guanabara,1987.
15.JUNG.CG, ibid , p.p 549, 550.
16.JUNG.CG, Psicologia da Religião Ocidental e Oriental, Obras Completas Vol XI. , p. 419. Petrópolis: Editora Vozes, 1983.
17.JUNG.CG, Estudos Sobre Psicologia Analítica,Obras Completas Vol VII , p. 72.
18.MILLER.J, ibid.
19.JUNG.CG, ibid, pp.184-185.
20.JUNG.CG, ibid, p.198.
21.JUNG.CG, ibid, p.220.
22.JUNG.CG, ibid, p.200.
23.JUNG.CG, Estudos Alquímicos, Obras Completas Vol XIII, p.229. Petrópolis: Editora Vozes, 2003.
24.JUNG.CG, Estudos Sobre Psicologia Analítica,Obras Completas Vol VII, p.89.
25.MILLER.J, ibid.
26.MILLER.J, ibid.
27.JUNG.CG, ibid., p.209.
28.JUNG.CG, Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, Obras Completas Vol IX/1 , pp. 280, 281. Petrópolis: Editora Vozes, 2000.
29.HILLMAN.J,apud MILLER, ibid. Todas as citações cujos originais estão em outra língua foram traduzidas sob minha responsabilidade.
30.JUNG.CG, Cartas Vol II, p.338. Petrópolis: Editora Vozes, 2002.
31.JUNG, ibid, p.365.
32.JUNG.CG, Psicologia da Religião Ocidental e Oriental, Obras Completas Vol XI, pp.119-120.
33.JUNG, ibid.
34.JUNG, ibid.p.159.
35.JUNG, ibid.
36.JUNG, ibid.
37.JUNG, ibid.
38.JUNG, ibid.pp.170,171,172.
39.JUNG.CG, Psicologia e Alquimia, Obras Completas Vol XII. Petrópolis: Editora Vozes, 1994.
40.JUNG.CG, AION – Estudos Sobre o Simbolismo do Si-mesmo, Obras Completas Vol IX/2. Petrópolis: Editora Vozes, 1982.
41.JUNG.CG, Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, Obras Completas Vol IX/1.
42.JUNG.CG, Tipos Psicológicos, pp. 80-81.
43.JUNG.CG, A Natureza da Pisque, Obras Completas Vol VIII/2, p.22.
44.EDINGER.E, Ego e Arquétipo, p.246. São Paulo: Cultrix, 2000.
45.Para Edinger o conflito entre o 3 e o 4 representa a oposição entre os aspectos dinâmicos-processuais e os estáveis-estruturais da totalidade. Apesar de Jung descrever a função transcendente como a produção do terceiro excluído, J.Miller vê nela um exemplo psicológico do axioma da profetiza Maria onde “o um torna-se dois, o dois torna-se três e do três vem o um, como o quatro”. A função transcendente seria o terceiro excluído que ao reunir o que estava dividido origina o quarto que restabelece a unidade psíquica.
46.JUNG.CG, Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, Obras Completas Vol IX/1 , p.104.
47.JUNG.CG, Psicologia e Alquimia, Obras Completas Vol XII, p.36.
48.JUNG.CG, Mysterium Coniunctionis, Obras Completas Vol XIV/1, pp.172-173,174.
49.JUNG.CG, Estudos Alquímicos, Obras Completas Vol XIII , p.163.
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ResponderExcluirBom trabalho de pesquisa e boas referências. Gratidão!
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