quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

DIALÉTICA DO IMAGINAL

Obs: os números que se vêem ao longo do texto correspondem às notas.


DIALÉTICA DO IMAGINAL 1

ANDRÉ DANTAS

A teosofia mística iraniana é governada por um esquema que articula 3 categorias de realidade. O mundo físico-sensorial inclui o mundo terreno e o universo sideral, sendo composto por corpos físicos. Sua constituição básica é dimensional, extensiva. Um outro nível de realidade é o mundo inteligível das puras inteligências angélicas. Entre os dois está o mundo imaginal, o mundo suprasensorial dos anjos-almas. Estes três universos correspondem a 3 órgãos de conhecimento: Os sentidos, a imaginação e o intelecto. Essa tríplice forma de conhecimento corresponde a triplicidade antropológica do corpo, alma e espírito. Corbin ressalta a importância de não confundir a imaginação com a fantasia, preferindo por isso o termo imaginal para diferenciar de imaginário que refere-se a algo não real, ontologicamente secundário à realidade2.

O mundus imaginalis oferece um modo ontológico para a localização dos arquétipos da psique: como estruturas fundamentais da imaginação ou como fenômenos fundamentalmente imaginativos que transcendem o mundo dos sentidos em seu valor, senão em sua aparência. Seu valor está na sua natureza teofânica e na sua virtualidade ou potencialidade, que são sempre ontologicamente maiores do que a realidade e seus limites. (Como fenômenos, eles devem aparecer, mas essa aparição se dá para imaginação ou na imaginação.) O mundus imaginalis provê para os arquétipos um fundamento cósmico e valorativo, quando necessário, diferente de bases tais como: instinto biológico, formas eternas, números, transmissão social e linguística, reações bioquímicas, código genético, etc. (...) Em particular - essa tradição neoplatônica é totalmente ocidental, mesmo que seu método não seja empírico, sua concepção não seja racionalista e seu apelo não se confunda com doutrinas espirituais ou sobrenaturais. Essa tradição se atém à noção de alma como primeiro princípio, localizando-a como um tertium entre as perspectivas do corpo (matéria, natureza, empirismo) e da mente (espírito, lógica, idéia). Alma como tertium, a perspectiva entre outros e de onde outros podem ser vistos, tem sido descrita como a consciência hermética, como “esse in anima”, como a posição do mundus imaginalis por Corbin, e pelos escritores neoplatônicos falando sobre os intermediários ou figuras da metaxy3.

O imaginal é tão real quanto o mundo dos sentidos e o do intelecto, mas ele requer uma faculdade cognitiva específica, itermediária entre o sensorial e o intelectual. Essa faculdade imaginativa materializa o espírito e espiritualiza a matéria, abrindo as portas de um reino ontológico composto por substâncias sutis. As formas e configurações desse mundo não são idênticas às formas físicas da realidade empírica já que não são todos os que as captam. Também diferem do puro mundo inteligível, pois possuem dimensão, extensão, uma materialidade imaterial com corporalidade e espacialidade próprias. O mundo imaginal é chamado em persa de na-koja-abad, terra de lugar nenhum. Essa expressão não refere-se a algo inextenso, um estado sem dimensão. O termo literalmente significa a cidade, o campo, ou terra (abad) de lugar nenhum (na-koja), sendo portanto algo extenso4.
Para Corbin esse mundo intermediário cujo nível ontológico está acima do mundo sensorial e abaixo do mundo espiritual, é metafisicamente necessário para se descrever o laço entre o espírito e a matéria. Dele depende a validade dos estados visionários, os rituais simbólicos, a verdade do sentido espiritual percebido nos dados imaginativos e as revelações proféticas. O mundo imaginal é o lugar onde se desenrolam os acontecimentos visionários dos místicos, os gestos das epopéias heróicas, os atos simbólicos de todos os ritos de iniciação, as liturgias e seu símbolos, assim como a obra alquímica5.
Entre a deidade transcendente e o mundo dos homens há a corporeidade espiritual, a presença do divino neste mundo. É Sofia, a alma do mundo neoplatônica, a Shekinah cabalista, que media a divindade pura eternamente oculta e fora de alcance com o mundo material dos homens. A imaginação não cria esse intermundo mas reflete as idéias-imagens, as figuras arquetípicas, as animae coelestes pré-existentes ao homem. A imaginação é o lugar epifânico onde os anjos revelam-se pois a substância do espelho da imaginação distingue-se da substância da imagem. A imaginação possui uma função central e mediadora graças ao mundo imaginal, que escapa do dualismo racionalista que insiste em privilegiar a matéria ou o espírito, a história ou o mito6.
Para Corbin o imaginário do fantástico, do horrível, monstruoso, macabro e do absurdo é o resultado da secularização do imaginal, contrário a arte da imaginação da cultura islâmica, tradicionalmente caracterizada pelo hierático, pela seriedade, estilização e significação. A patologização da imagem não pertence ao imaginal, mas ao imaginário. Hillman difere de Corbin ao considerar a patologia como a via régia para o imaginal. Quanto mais desagradável e obscena for uma imagem mais probabilidade ela tem de mobilizar as profundezas psíquicas. O feio, e o grotesco impressionam mais a psique do que o belo e o agradável. Por isso é essencial o reconhecimento da infirmitas do arquétipo, o reconhecimento dos deuses como patologizados. A mitologia exige o extremo, o insólito, de forma que a patologização não lhe é arbitrária ou contingente, não podendo ser eliminada sem que se deforme o mito. As figuras embusteiras, vingativas, dilaceradas, obcecadas e vulneráveis dos mitos mostram que os deuses não são modelos de perfeição. Desse modo a enfermidade é uma das formas de imitatio dei7.
O homem é feito à imagem e semelhança dos deuses e deusas quer esteja sorridente, feliz, furioso, melancólico ou torturado. As anormalidades humanas refletem as anormalidades originais divinas, que precedem e tornam as nossas possíveis. Como os deuses são imortais, fazemos no tempo o que eles fazem durante toda a eternidade, encenando em nossas psicopatologias suas enfermidades primordiais. A tarefa da psicologia arquetípica é realizar a epistrophé, revertendo um evento ao seu padrão mítico através da semelhança que há entre eles. Esse movimento equivale ao ta´will, que na metafísica iraniana conduzia algo de volta ao seu princípio arquetípico.
A alma está situada espacialmente no meio, entre o espírito e o corpo. Apesar da crítica ao conceito de centro e si-mesmo, o lugar privilegiado pela psicologia arquetípica ainda é o mesmo, o centro entre os opostos. Na metafísica iraniana deus não ocultava de todo a sua face, revelando parte dela aos homens através da imaginação, que por servir de porta de acesso ao inteligível era considerada uma faculdade espiritual. Mas a psicologia arquetípica enquanto disciplina da alma não almeja ascender às alturas espirituais e faz do intermundo o seu lugar por excelência. Para ela o imaginal não é um degrau para o alto, mas o local onde o próprio espírito tem sua origem enquanto uma dentre as muitas imagens possíveis. O espírito, o intelecto, a matéria e a percepção são imagens que esqueceram das suas constituições metafóricas e passaram se enxergar como literalmente reais. Não é que eles sejam irreais, imaginários, são reais mas não literais, pois sua realidade é imaginal.
Esse espaço fronteiriço é visto por D.Miller como o lugar por excelência do metafórico. A metáfora da fronteira é tomada como uma metáfora da própria noção de metáfora, de forma que o viver metaforicamente é uma experiência fronteiriça de estar eternamente de passagem numa borda que está em todo lugar8.
Em um outro escrito dedicado à problemática relação entre a imagem e palavra D.Miller alerta para o modo como os opostos são dissociados uns dos outros tanto no senso comum como na consciência acadêmica. Entre as diversas formas de dissociação possíveis ele enumera as mais comuns: cérebro esquerdo vs direito, pensamento vs sentimento, sensação vs intuição, palavra vs imagem, espírito vs alma, consciente vs inconsciente, discriminação vs conexão, literal vs metafórico, diferença vs identidade, muitos vs um, animus vs anima, teoria vs prática, analítico vs sintético, logos vs eros, exclusão vs inclusão, independência vs cuidado, forma vs matéria, masculino vs feminino, Marte vs Vênus. Em cada caso um termo é privilegiado em detrimento do outro9. Mas essa crítica pode ser aplicada ao trabalho do próprio D.Miller que quando teve a oportunidade de por as mãos na mitologia do espírito santo, cujo objetivo é tornar visível a inclusão dos opostos, a interpreta como uma metáfora do próprio modo de funcionamento da metáfora, caindo na armadilha de cindir e privilegiar um oposto em detrimento do outro. “O terceiro é um espírito, e faz sua morada no limiar, na fronteira, funcionando como porta de passagem. Focar o espírito como uma “coisa” seria perder o relacionamento entre os dois”10.
D.Miller convida a desconstrução da noção literalista de trindade que não compreende que o terceiro termo é um espírito, uma fronteira entre duas zonas que não está em lugar algum, pois não é um lugar literal. Infelizmente a interpretação metafórica não vai longe o suficiente porque depende e funciona dentro da noção de espaço extensivo. Ao invés de permitir que seu pensamento mova-se ao sabor das asas do espírito santo, Miller o aprisiona na lógica sólida responsável pela própria dissociação que tenta resolver, coagulando a fluidez relacional num espaço estático situado na fronteira entre os opostos. Isso se estende por toda a psicologia arquetípica.
No fragmento 45 Heráclito escreveu que “não se pode descobrir os limites da alma, mesmo que se viajasse por todas as suas estradas para assim o fazer; tal é a profundidade do seu logos”. Snell comenta esse fragmento afirmando que o princípio de profundidade tornou-se a qualidade característica da psique. “Em Heráclito a imagem da profundidade é designada para elucidar o traço saliente da alma e seu reino: tem sua própria dimensão, não é prolongada no espaço.”11. Mas quando Avens se depara com o fragmento e o comentário de Snell ele diz: “Se acreditarmos em Heráclito, o que distingue o Ocidente, em seus momentos mais receptivos, é a consciência da região intermediária da psique – o ‘intermediário’ imaginal penumo-somático”12. O que aparece como uma profundidade não espacial é convertida num interespaço externo. Quando encontra o convite heraclitiano de conhecer o verdadeiro espaço lógico da alma, o que a psicologia arquetípica faz é correr para fora dizendo “não”, mesmo que na sua imaginação acredite ter aceitado o convite.
A abordagem metafórica seduz-nos com suas belas imagens poéticas a acreditarmos que através dela transpomos a fronteira do pensamento naturalista, quando na verdade o que ela faz é aprisionar a consciência de forma ainda mais eficaz ao oferecer uma cela cinco estrelas tão ricamente ornamentada, que pensa-se ter deixado a prisão extensiva para trás. A psicologia arquetípica acha que pode sair da prisão literal sem pagar o preço necessário, a dissolução do pensamento sensorial-imagístico na negatividade lógica do Conceito. Isso exige a dissolução da concepção extensiva de realidade, algo que a imaginação é incapaz de fazer por ser uma das suas crias. Ao invés de liquefazer a extensividade na qual duas coisas não ocupam o mesmo lugar no espaço, a imaginação coagula o fluxo dialético num espaço intermediário. Essa metaxy funciona como uma ponte que permite o espírito atravessar o abismo que o separa da matéria espiritualizando-a, e a matéria ascender em direção ao espírito materializando-o.
Alguns colocam a psicologia arquetípica sob a proteção das asas de Hermes já que as fronteiras são seu território. Hermes é a personificação da fronteira, um deus inquieto, sempre em movimento, mas enquanto imagem, a ponte que serve de fronteira é estática e externa ao que lhe atravessa, logo a psicologia imaginal não é uma psicologia da interioridade como diz ser e nem supera a dicotomia externo-interno como diz superar. A forma lógica na qual ela opera é Apolínea por natureza, pois sua recusa de qualquer compromisso sério com o pensamento lógico é a garantia de que ele retornará sombreando a sintaxe da teoria com o mesmo racionalismo abstrato que ela tentou exorcizar.
A lógica da imaginação é a mesma lógica neurótica do dualismo dissociativo que ela ataca. Mesmo quando trabalha com imagens dionisíacas elas não permeiam sua sintaxe que permanece apolínea. A diferença indiferente com a qual trabalha é o outro lado da identidade formal-abstrata onde A = A, que faz da essência humana uma propriedade subjetiva privada. Esse retorno passa despercebido porque a psicologia arquetípica lida apenas com conteúdos, com imagens, não possuindo um estilo de consciência adequado para refletir sobre a lógica que informa e sustenta o seu funcionamento.
Ao re-visionar aquilo que aborda, a imaginação põe-se de fora do material abordado. Re-imaginar é exteriorizar-se, pôr-se na ponte que fica entre, que reúne o cindido, mas permanece de fora daquilo que reúne. Hillman acredita que sua abordagem é fenomenológica, pois toma uma coisa pelo que ela é deixando-a falar por si. Mas ao se situar no mundo imaginal ele a priori se exterioriza do fenômeno olhando-o de fora. A epistrophé por ele realizada não é o retorno dos fenômenos ao seu princípio arquetípico, mas a expulsão da consciência para fora do fenômeno, para ponte que lhes faz fronteira.
Esse local intermediário é uma terra de ninguém na qual a psicologia arquetípica pode pilhar materiais à vontade para realizar sua bricolage. Desse modo ela se institui enquanto acting-out teórico do lado pueril de Mercúrio, e quando sua outra face ameaça aparecer (Mercúrius Senex), ela foge as pressas para sua terra sem lei onde razão, conceito e lógica não podem apanhá-la, estando proibidos de entrar visto estarem por demais comprometidos com o literalismo, e quando mesmo assim ainda é apanhada ela alega em sua defesa que se trata apenas de metáforas, que tudo que ela pretende é esculpir imagens e que a culpa é de quem a levou a sério demais.

Muito do que Hillman diz é apenas para efeito retórico, e os argumentos são usualmente experimentados para um ajuste sob medida, ou testados devido a sua sugestibilidade mitopoética, e então abandonados. Como percebi em Dallas, Hillman nem sempre acredita no que ele diz, e o embusteiro Hermes nele fica freqüentemente perplexo pelo fato de que os outros (incluindo a mim) o tomem tão 'literalmente'13.

Esse ponto médio permite a psicologia arquetípica fundamentar-se no limbo, no lugar esquecido pela metafísica do espírito e pela ciência materialista. Dali ela ataca os dois enquanto permanece refugiada nas suas imagens dos ataques literalistas de ambos. Quando pressionada a esclarecer os seus argumentos ela joga uma cortina de fumaça metafórica que confunde os seus opositores não esclarecendo nada e jogando tudo as suas sombras. “O método metafórico não fala por afirmações categóricas nem explica por contrastes claros: ele entrega todas as coisas às suas sombras”14. Mas isso não a impede de afirmar em outros momentos a necessidade que a alma possui de clareza. “Às vezes, a alma precisa de disciplina e quer o brilho do sol, idéias claras e distintas”15.
A psicologia arquetípica não compreende a profundidade da lógica heraclitiana insistindo em horizontalizá-la no espaço extensivo sob a forma de um interespaço imaginal. Mas como Snell afirmou a alma tem sua própria dimensão, que é a profundidade do seu Logos e não o prolongamento espaço-extensivo. Esse intermundo é a reificação da reserva mental praticada pela psicologia arquetípica, sua hesitação em penetrar nas profundezas do espírito e da matéria que situam-se nas bordas contrárias. Por trás do aparente nomadismo do cavaleiro errante sempre em movimento oculta-se uma lógica estática e indiferente como o é uma ponte em relação aquilo que lhe atravessa.
O arquetipalista poderia argumentar aqui que espírito e matéria não são opostos, mas simplesmente diferentes. Essa forma de diferença é a própria indiferença que ela mantém com seus conteúdos, pois os joga na indiferença múltipla. Tanto faz se a matéria é colocada ao lado do espírito, de um par de sapatos ou de uma lata de tinta, afinal todos são simplesmente diferentes uns dos outros. O que a psicologia arquetípica não consegue compreender é que a diferença entre matéria e espírito não é a mesma que entre os outros termos citados, cujas determinações são externas uns dos outros, não fazendo a menor diferença para aquilo que eles estão sendo. No caso da matéria e do espírito não se pode dizer o mesmo, basta olhar a história de ambos para perceber que um afirma sua identidade negando a do outro. O ser espiritual impõe-se sobre a matéria afirmando-se como seu criador, enquanto a matéria toma a si como realidade primeira e o espírito como um engano ou uma sublimação secundária. O espírito faz-se espírito afirmando-se naquilo que ele nega para poder ser o que é, espiritualizando a matéria, que por sua vez faz o mesmo ao materializar o espírito. Assim a diferença entre eles é interna ao ser que eles são e sem ela cairiam na pura indeterminação. Mas na psicologia arquetípica eles são abstraídos um do outro e desse modo abstraído de si-mesmos, pois o si-mesmo de cada um inclui a diferença com o outro. O resultado é a diferença abstrata onde espírito e matéria são abstraídos das qualidades que os concretizam, já que é a partir delas que eles se opõem.
Na psicologia imaginal espírito e matéria são simulacros indiferentes aos predicados que os qualificam, porque ela acha que a separação entre espírito e matéria, intelecto e sentidos, resulta de algo externo aos termos separados. Não com-preendendo que cada termo determina a si-mesmo a partir da diferença com seu outro, ela exterioriza unilateralmente cada um de si-mesmo ao indiferenciá-los à sua diferença. Assim ao invés de aprofundar-se na interioridade dos fenômenos o que a psicologia arquetípica faz é expulsá-los da sua determinação, exteriorizando eles de si-mesmos, ela deles e ela de si-mesma enquanto disciplina da interioridade.
A psicologia arquetípica joga a diferença entre matéria e espírito na indiferença ao se recusar a compreender a diferença essencial que há entre ambos. Se em Jung a imaginação é a atividade de reunir os contrários, na psicologia arquetípica há uma recusa em situar a oposição como a razão de ser da imaginação, o que trai sua incompreensão da razão de ser do seu próprio fundamento. Tanto em Jung como na metafísica iraniana a imaginação aparecia como uma forma de escapar do dualismo entre esse in intellectu e esse in re, pois situando-se no centro dessa oposição ela servia de local onde as posições discordantes dialogavam diplomaticamente. Se o dualismo é o culpado pela dissociação então ele é a razão de ser da imaginação enquanto faculdade de re-unir os opostos, afinal ela só pode unir aquilo que foi separado, pois algo que não foi diferenciado não pode ser re-unido, como bem sabiam os alquimistas. Se a imaginação une aquilo que o dualismo separou então ela é o seu oposto visto que separar e unir são movimentos que pressupõe um ao outro. Se o imaginal é possível graças ao dualismo então ao colocar-se como algo externa a ele, ela exterioriza-se do seu fundamento já que sua razão de ser situa-se fora de si como um inimigo a ser combatido. Sem dualismo não há imaginal. Se são fosse pela lâmina de Cronos que expulsa Urano e Gaia para locais opostos não haveria a região intermediária da alma do mundo. Se não fugirmos do dualismo para o limbo do intermundo, mas permanecermos nele indo até as suas últimas conseqüências, seu veneno se transmutará na sua cura, e aquilo que havia sido visto como dissociado é com-preendido na diferença interna que o determina. A cura da ferida dualista não vem de nenhum outro lugar além dela mesma. Similia similibus curantur.
O mundo imaginal é concebido por Samuels como um local intermediário entre a interioridade do paciente e do analista, um espaço onde ocorre o processo transferencial-contratransferencial. Quando o analista torna-se consciente de que a contratransferência experenciada em sua interioridade possui raízes na subjetividade do paciente, ele atinge o intermundo imaginal. Aquilo que é próprio dele, seu corpo, sua imaginação, suas emoções, concretizam sua substância no relacionamento terapêutico, por isso interpretar apenas introspectivamente o que nele ocorre é cegar-se para o compartilhamento da subjetividade do paciente através do intermundo imaginal16.
Para Samuels os estados visionários vivenciados no intermundo pelos místicos iranianos podem ser equacionados com as experiências contratransferenciais. Corbin considerava a imaginação do místico um órgão de conhecimento visionário, e para o analista este órgão é a imaginação ativada pela contratransferência. Na metafísica iraniana o imaginal exercia uma função mediadora central permitindo que todos os níveis de realidade simbolizassem um ao outro e Samuels estabelece um paralelo de como o analista simboliza alguma coisa para o paciente17.
No imaginal o corpo torna-se um estado de incerteza perdendo sua concretude literal para tornar-se mensageiro da psique do paciente. Ambos compartilham uma realidade sutil que promove a livre circulação de conteúdos tidos como pertencentes ou a um ou ao outro. Na busca de curar a dicotomia entre corpo e alma, Samuels formula o termo “visões corporais” para indicar o estado de incerteza entre a alma e a corporalidade. A consciência imaginativa do terapeuta e suas percepções corporais que aparentemente se desencontram, seriam melhor percebidas como duas maneiras diferentes de abordar um mesmo ponto. As comunicações contratransferenciais são imagens e ao mesmo tempo sensações corporais, ambas resplandecendo até o ponto de quase fusão. A imagem se faz carne, e a interioridade subjetiva do paciente se torna pessoal no corpo do analista. Esse processo poderia ser compreendido como uma experiência mística e Samuels enumera os predicados básicos que qualificam uma experiência como mística relacionando-os aos predicados que qualificam o processo contratransferencial.

Primeiro, os estados místicos são indescritíveis, ou seja, não podem ser completamente explicados para quem não tenha tido uma experiência semelhante. Segundo, os estados místicos levam ao conhecimento, a um insight, e geralmente se apresentam com um enorme senso de autoridade. Terceiro, os estados místicos são transitórios. Quarto, os estados místicos acontecem a uma pessoa; mesmo que ela esteja preparada para isso, acaba dominada por um poder que parece externo. Quinto, fica uma sensação de que tudo está ligado ao resto, como uma insinuação de uma finalidade. Sexto, a experiência mística é atemporal. Finalmente, o ego passa a não ser percebido como o Eu real. Todos esses pontos podem ser comparados às contratransferências descritas neste livro. É difícil explicá-las a alguém que não as tenha experimentado. O analista obtém insights delas, geralmente de uma maneira fragmentada. Os estados de contratransferência são momentâneos. Mesmo o treinamento analítico não pode antecipá-las ou preparar alguém para uma experiência de contratransferência. Sentimo-nos ligados ao nosso paciente num estado de intimidade que é ao mesmo tempo belo e intolerável. As reações de contratransferência não têm sentido de história: passado e presente se misturam. Finalmente, o analista sabe que o seu ego não é responsável pelo que está acontecendo com ele18.

A psicoterapia seria então um misticismo entre pessoas onde o espírito e o corpo, o eu e o outro, religam-se por meio do intermundo imaginal sem perderem por completo a distinção que os separa. Samuels relaciona esse interespaço à zona transicional descrita por Winnicott, onde o bebê experimenta os objetos externos em uma zona limítrofe entre interno e externo, estabelecendo um modo de comunicação semelhante ao que tinha com a mãe.

A hipótese do mundus imaginalis pode ser usada juntamente com o conceito de identificação projetiva, postulando uma base para que a identificação projetiva possa ocorrer e buscando as condições que levaram a isso. Utilizando termos de outras áreas, diria que a busca é pelo “rizoma” que alimenta a identificação projetiva e pelo “éter” que permite a transmissão. Tais fatores seriam, por definição, “objetivos”, isto é, coletivos ou impessoais e também deveriam ser separados da identificação projetiva como um mecanismo de defesa, mesmo numa extensão do seu significado que viesse incluir o funcionamento mental normal. Ao trazer à tona imagens de éter e rizoma, tento questionar a noção de espaço vazio. Não precisamos perguntar sobre o movimento das projeções, porque elas não se movem – os indivíduos relacionados já estão unidos. Parece que a hipótese do mundus imaginalis se encaixa muito bem às teorias do desenvolvimento da personalidade que postulam uma idéia de união inicial associada a fantasias de unidade. O bebê, como ser, e os objetos do bebê são um só19.

Ao conceber o imaginal como lugar de ocorrência da transferência-contratansferência, Samuels vincula duas abordagens junguianas tidas como opostas. De um lado a psicologia desenvolvimentista, com sua ênfase na análise da relação analista-paciente, e do outro a psicologia arquetípica com seu foco no imaginal. Para Samuels ambas as abordagens ao serem aprofundadas atingem o mesmo ponto de indivisibilidade entre o pessoal e o coletivo, mas enquanto uma segue a via pessoal do arquetípico a outra segue a via arquetípica do pessoal. Há uma tensão entre o trabalho com a pessoa e com a imagem que a psicologia junguiana expressa na divisão entre uma abordagem clínica e uma imaginal. Samuels convida a uma superação dessa dicotomia. Mas o imaginal preserva a dicotomia externo-interno ao coagular num espaço estático o movimento de passagem de um no outro.

Da mesma maneira que um relacionamento necessita de um ambiente favorável, um processo psicológico como a identificação projetiva também necessita de seu meio próprio e de se manifestar pressupondo um certo domínio, ou nível de experiência, que atua como pano de fundo. O mundus imaginalis satisfaz essa necessidade, particularmente porque deve ser visto como preestabelecido e pronto para permitir a ocorrência de processos psicológicos. (...) Semelhantemente, o conceito de mundus imaginalis dá menor ênfase ao movimento e à interação, quer seja na direção → ou na ←, ou ainda na ↔. Trata-se de uma tentativa de descrever um “veículo” que pudesse enquadrar todo o campo analítico – interpessoal, interativo, intrapsíquico, intersubjetivo20.

O que é arquetípico é a dialética iterativa que une aquilo que na aparência parece estar separado. Quando o psicólogo mergulha na sua interioridade o que ele encontra é uma solução alquímica que mistura suas fantasias com as do paciente. Externo e interno longe de serem locais estáticos e excludentes seriam melhor concebidos como fluxos de passagem de um no outro. Paralisar esse fluxo num local situado no meio é o melhor modo de prender o espaço na sua abstração, pois bloqueia sua fluidificação nos conteúdos que por ele se movem. Ao invés de nos aprisionarmos no conceito abstrato de espaço através de um interespaço que une externo e interno, podemos concebê-lo como acontecimentos.

... será que ganhamos algo com nossa divisão habitual entre o interpessoal (o relacionamento) e o intrapsíquico (a imagem)? O que o projeto demonstrou é que a interação entre o paciente, o analista e o relacionamento entre eles pode se situar seguramente no terreno imaginativo, sem abandonar o fato de que existem duas pessoas presentes. O analista poderia pensar, sentir, comportar-se como se ele fosse o paciente, ou ainda atuar como parte da psique do paciente, de tal forma que o mundus imaginalis se tornasse uma dimensão compartilhada da experiência. Quando consideramos nossa atitude em relação à divisão entre o interpessoal e o intrapsíquico, não há necessidade de temermos um abandono do aspecto humano. De fato eu poderia sugerir que, da mesma forma que nossa noção do mundo interno, intrapsíquico, inclui o papel representado pelas outras pessoas, nossa definição do que possa ser o interpessoal pode também ser enriquecida e expandida. Então, a imagem interna passaria a ser vista como um elo entre duas pessoas, entre o paciente e o analista, e como algo que viesse a encorajar o relacionamento. Conclui-se que separar o trabalho realizado com o que é aparentemente imaginativo do trabalho realizado com o que é aparentemente interpessoal constitui-se num erro conceitual e numa limitação. Não se trata mais do exame da comunicação em oposição ao exame do mundo imaginativo. Se o conceito de um mundus imaginalis de duas pessoas for levado a sério, deveremos conceber o interpessoal como uma linguagem da psique e o imaginativo como um meio para a comunicação entre duas pessoas para um relacionamento. As pessoas podem portar fantasias; fantasias podem ser originárias das pessoas. É necessário ver nosso campo de referência na análise como contínuo, sem suturas, de forma que pretensas “imagens” e pretensas “comunicações interpessoais” nem se separem nem ganhem ascendência uma sobre a outra com base numa hierarquia preconcebida de importância. A moeda tem três faces: ao corpo e à imagem, junta-se o relacionamento21.

A palavra chave é relação. O corpo orgânico com suas células, ossos e pele é também um corpo vaporoso, imagético pois a aquosidade onírica das fantasias permeiam o corpo em toda sua extensão. Assim paciente e psicólogo dissolvem-se em movimentos de projeções de conteúdos introjetados e introjeções de conteúdos projetados. Não há nenhum interespaço vazio a espera de conteúdos que venham a preenchê-lo, e sim a inquieta circulação dos fluxos mercuriais.
A psicologia imaginal não vai longe o suficiente, pois para no meio do caminho e olha os opostos de fora. Através do imaginal o movimento que vai de um pólo ao outro e cuja essência se dá por meio da dissolução do conceito de espaço é coagulado na forma de um espaço intermediário. O imaginal é a dialética vista de fora, imaginada dentro da prisão extensiva do espaço-tempo. É como se alguém fotografasse o momento em que um movimento atingiu sua metade e afirmasse que aquele instante congelado é um espaço entre a primeira e a segunda metade de algo que se afirma enquanto puro dinamismo que circula entre os opostos, que os pensa em conjunto como aquilo que eles são em si-mesmos, a sua dialética. Mas a saída da prisão extensiva se faz através de um mergulho no próprio intermundo imaginal, no deixar a ponte cair nas profundezas abismais, pois tornar-se una com ele é o meio de re-encontrar-se com aquilo que a atravessa22.
A dialética é um movimento lógico que não é espacial ou temporal. A dificuldade de com-pensar os opostos como uma unidade na sua diferença é o que leva à invenção de uma terceira alternativa entre as polaridades, transparecendo o apego da imaginação a lógica do ego cotidiano. Enquanto o imaginal permanecer abstraído daquilo que o atravessa, o pensamento continuará prisioneiro da concepção extensiva que fundamenta a noção de ego. É por isso que a psicologia junguiana trata o pensamento como sinônimo do pensar analítico-abstrato, porque é esse pensamento que secretamente informa a lógica do seu funcionamento.
A ponte enquanto lugar estático é o que preserva o imobilismo abstrato do espaço geométrico. Em o Mito da Análise Hillman buscou o background mítico para a criatividade psicológica, que por isso precisava refletir o fenômeno da transferência que possibilita e impulsiona a psicoterapia. Através do mito de Eros e Psiquê Hillman re-imagina as profundezas arquetípicas da transferência. O problema é que ele apenas imagina a conjunção, não a com-pensa, ou melhor, por não a com-pensar explicitamente ele implicitamente frustra a essência do próprio mito, bloqueando a transferência da imagem para o pensamento e deste para imagem. Ele permanece olhando as imagens de fora como se fossem coisas dimensionais. Quando se adentra na interioridade das imagens elas deixam de ser coisas ao dissolverem-se no movimento que realizam. O resultado é que não há primeiro uma imagem que apenas secundariamente realiza esse ou aquele movimento já que ela seria aquilo que faz, re-encontrando a si-mesma nos predicados fazem do seu ser o eterno movimento de estar-sendo.

... Eros se situa no contexto da consciência grega, tal como a reconstruímos, como uma figura da metaxy, a região intermediária, nem divina nem humana, mas o princípio de intercurso entre elas. (...) O fato de ele não ser representado como os outros indica que não é tanto uma Gestalt quanto uma função divina, não tanto um padrão específico, mas um meio de penetrar em qualquer padrão e dar-lhe um colorido erótico. Podemos imaginar esta função como operando entre e dentre os Deuses e podemos conceitualizá-la como a consubstanciação e unidade dos Deuses e participação deles no mundo humano. Eros une o pessoal a algo que está além do pessoal e traz este algo que está além para a experiência pessoal. Ele conduz (psicopompo) a alma aos Deuses e traz um pouco de luz e do sublime horror do divino para a alma – pois no amor somos o melhor e o pior de nós mesmos. Este metaxy, esta região intermediária, hoje pode ser apropriadamente descrita como o reino da realidade psíquica (não pessoal no sentido comum do amor), que se estende numa extremidade ao eros cosmogônico espiritual e, na outra, ao físico, e ao fálico23.

O real casamento de Eros e Psiquê exige a transferência de um para o outro de modo que Eros deixa de ser algo que se utiliza de uma ponte psíquica para conduzir o divino ao humano e o humano ao divino. Se Psiquê não for insensibilizada às flechas flamejantes de Eros, ela se tornará verdadeiramente erótica, deixando de ser um interespaço estático para mover-se sob o impulso das suas asas, divinizando o humano e humanizando o divino, transmutando-se numa metaxológica24, uma lógica erótica que se realiza como um eterno devir entre os opostos.
O intermundo imaginal é aquilo que impede que o espírito e a matéria se com-fundam ao mesmo tempo que os une. Mas enquanto conceber-se extensivamente, se colocará de fora daquilo que separa e une. Somente liquefazendo-se naquilo que é e faz é que as portas da interioridade se abrirão para ele, pois ele se revelará como aquilo que é, a ponte interna ao espírito e a matéria cujo transpassar é o caminho de cada oposto a si-mesmo. A interiorização do imaginal em si-mesmo, naquilo que ele faz, é o que salvaria a interpretação de Avens do fragmento de Heráclito do absurdo. O imaginal pneumo-somático é o próprio hífen que separa e une pneuma e soma.

A coniunctio (conjunção) nem sempre representa uma união imediata e direta, porque necessita de certo meio, ou respectivamente se acha em tal meio ... Ele é “aquela alma” (anima) que constitui a mediadora entre o corpo e o espírito. (...) O Mercurius, pois, não é apenas o medium coniungendi (meio de união), mas simultaneamente é também aquilo que deve ser unido, porque ele forma a essência ou a “matéria seminalis” (matéria seminal) do masculino como do feminino25.

Essa diferença-unificante é a profundidade não extensiva de cada pólo, a lógica interna que faz de cada um a diferença do outro, pois não há nada entre eles, ou melhor, há, o movimento no qual cada um flui no outro para se transformarem naquilo que já são ao reencontrarem-se refletidos na forma invertida do outro. Isso é dialética, a com-preensão de que os opostos se co-determinam por se complementarem e ainda assim tertium non datur26.
O conceito de centro tornou-se um anátema no pós-modernismo. Mesmo apresentando-se sobre o prisma da unidade a noção de centro se multiplicou e deslocou apresentado-se sob as mais variadas formas como ousia, essência, arkê, deus, energéia, bem, idéia, ser, homem etc. Mas de acordo com sua própria noção era necessário que esse centro fosse um e somente um, soberano e exclusivo. Se o seu nome mudou é porque ele não é homogêneo ou fixamente identificado consigo mesmo. Por isso ao invés do centro o pós-modernismo elegeu as margens, as fronteiras, os limites como novo foco de atenção.
Mas de acordo com Hermes Trimegisto: “Deus é uma esfera infinita cujo centro está em toda parte e a circunferência em parte alguma”. O centro não é um local ou ente definido, mas o lugar onde co-incidem os opostos. Esse lugar não é lugar algum, mas a co-incidência de centro e fronteira, o que requer a negação absoluta da noção extensiva de lugar. O centro não é apenas um lugar ordenado e pacífico pois sendo o encontro dos opostos é também onde se concentra a mais intensa inquietude. É o foco onde a unidade eterna parte em movimento multiplicando-se e onde a multiplicidade converge à fonte de geração, não um depois o outro, mas tudo ao mesmo tempo agora é o que constitui esse centro-froteiriço. Isso se dá porque o centro é o Logos enquanto ser universal particularizado na relação oposicional que constitui cada ente em si-mesmo. Esse centro é um movimento que nega a si-mesmo tornado-se seu outro, a fronteira. O centro de algo, o seu núcleo generativo, é a sua fronteira. Desse modo a dialética é um logocentrismo e simultaneamente um logofronteirismo, visto que o seu centro é uma unidade múltipla que não pode ser compreendida apenas espacialmente. Nele se cruzam o eixo horizontal e vertical, e a Jerusalém celestial que no centro do universo reflete a ordem divina encontra-se na Jerusalém histórica instável e caótica onde convergem os três monoteísmos em guerra por território. No centro o eterno epacializa-se e temporaliza-se entrando em guerra consigo mesmo. A rosa no centro da cruz irradia o brilho rubro das suas pétalas que atraem por sua beleza ao mesmo tempo em que alerta o perigo dos seus espinhos.

METAFÓRA E LITERALIDADE

A ontologia da psicologia arquetípica não é meta-física, pois continua presa a noção física de espaço, o interespaço imaginal da alma. Esse intermundo é uma fórmula conveniente que dá a impressão de que a contradição entre a antiga consciência mítica e o mundo contemporâneo foi adequadamente resolvida, quando o que ele faz é servir de rolha que impede que o demônio da contradição escape da garrafa demandando um real enfrentamento com ele. Enquanto permanecer refugiada no imaginal a psicologia arquetípica estará livre para brincar puerilmente no playground da imaginação. O preço de tal refúgio é o sacrifício do intelecto proibido de chegar perto das imagens por não saber lidar adequadamente com elas.
A razão é considerada inadequada para lidar com as imagens porque insiste em buscar definições unívocas para os fenômenos. Sua clareza solar não consegue lidar com a multiplicidade de sentidos inerente às imagens. A perspectiva da alma que está por trás do psicologizar é eminentemente metafórica, sendo por isso capaz de captar a multiplicidade de sentidos possíveis de qualquer fenômeno. Nesse politeísmo imaginal a oposição é apenas uma dentre as muitas perspectivas possíveis de serem utilizadas para ver através de um determinado fenômeno. A psicologia arquetípica não utiliza os mitos como fundamentação, mas para abrir as coisas, para penetrar na sua interioridade27.
Na psicologia arquetípica o literal não é sinônimo de concreto, pois o espírito goza de uma maneira própria de literalizar suas afirmações. Na perspectiva da alma a concretude é o aspecto sensível da metáfora, e não algo que se opõe a ela.

Psicologizar não significa passar simplesmente do concreto ao abstrato. Chegando a este ponto deveríamos clarear a distinção entre o literal e o concreto. Em primeiro lugar, a literalidade pode aparecer sob formas muito abstratas. Podemos tomar as abstrações literalmente: como verdades, normas, leis. O pensamento metafísico é um exemplo de literalidade abstrata, como também é o pensamento teológico, onde as noções mais abstratas acerca da divindade são tomadas como dogmas literais. Por esta razão a metafísica e a teologia se convertem com tanta facilidade em formas de evitar a psicologização. (...) Cada vez que dizemos “a alma é” isso ou aquilo, nos metemos em uma empresa metafísica e literalizamos uma abstração. Estas afirmações metafísicas acerca da alma podem produzir psicologia, mas não psicologização, e, como formas de evitar a psicologização, constituem uma escapatória abstrata. Escapamos não só quando saímos correndo para vida concreta, como também quando fugimos para o alto, para as abstrações da metafísica, da filosofia, da teologia, inclusive do misticismo. A alma extravia sua visão psicológica tanto nos literalismos abstratos do espírito como nos literalismos concretos do corpo. (...) O físico, que aparece também no metafísico, remete a um literalismo, à fantasia de uma substância, matéria, ou problema real que é o que é e não pode transparecer-se. O inimigo de psyché é a physis aonde quer que apareça, seja em uma forma concreta ou abstrata. O inimigo da psique não é nunca a vida concreta ou as coisas materiais, a menos que duvidemos que elas também possam ser transparecidas psicologicamente28.

A oposição entre metafórico e literal na psicologia arquetípica baseia-se na oposição entre uno e múltiplo, daí ser tão importante para ela retornar ao politeísmo grego em busca de um background histórico para uma polissemia que tenta escapar das armadilhas impostas pelo monoteísmo e sua insistência num sentido último que é único para tudo.
Tradicionalmente o real é ontologicamente concebido em dois sentidos opostos. No sentido unívoco, a identidade dos fenômenos é monisticamente afirmada. O sentido de algo precisa ser claramente definido e os equívocos delimitativos desse sentido são atribuídos às falhas do observador e não a algo intrínseco ao fenômeno. Essa forma de univocidade é característica do literalismo físico-materialista. Uma outra forma de univocidade concebe a multiplicidade de seres como uma aparência acidental, que só é tomada como real porque o pensamento permanece preso na superfície sensorial. Quando ele atravessa superfície sensorial consegue captar a sub-stância una que fundamenta todo o real. Essa forma de univocidade é característica do literalismo meta-físico.
No sentido equívoco a real realidade é concebida como uma pluralidade de diferenças. A multiplicidade de seres é primária, e a unidade é apenas uma dentre as múltiplas variedades de diferenças existentes. Na equivocidade o real é composto por um caos de fragmentos atômicos independentes, e qualquer forma de unidade sistemática não passa de uma ilusão, pois mesmo que a multiplicidade possa se organizar em sistemas integrados, eles são acidentes extrínsecos aos termos relacionados. Essa equivocidade governa o pluralismo pós-moderno com seu aglomerado de fragmentos indeterminados que celebram o seu vazio, completamente insensíveis uns aos outros, mergulhados numa multiplicidade fria onde a identidade e a diferença não se afetam.

Embora haja energia intelectual e vigor a serem ganhos da oscilação de um extremo a outro, as inversões e contradições de Hillman não inspiram confiança em seu trabalho. A ênfase de Jung em manter um equilíbrio entre o mundo do ego e o mundo do inconsciente parece uma grande e gentil sanidade ao lado das vacilações raivosas e selvagens de Hillman. Enquanto Hillman critica Jung por ser um dualista, é James Hillman quem, em última análise, é o derradeiro dualista, porque ele nunca pode reconciliar interno e externo, psique e sociedade, ego e mundo inferior, terapia e ativismo. Jung encoraja o diálogo e o debate entre os dois sistemas psíquicos, nunca privilegiando um sobre o outro, sempre preparado para falar em defesa do 'outro', mesmo sob o risco de se contradizer. Mas foi porque Jung sustentou os pares de opostos em um estado de consciência que ele não se inclinou às oscilações radicais em temperamento e orientação que encontramos em Hillman. No reino da psicologia profunda, é Jung quem está apto a sustentar os mundos opostos e gerar um diálogo criativo entre eles. A inabilidade de Hillman em compreender o paradoxo leva ao desastre da eclosão da contradição evidente. Embora Hillman afirme que Jung sofre de um horror a anima (horror animae), a tendência de Jung de subjugar a anima em favor do arquétipo da totalidade, de enfatizar o papel da anima como ponte e guia ao invés de 'meta', merece agora reconsideração à luz do estranhamente discordante culto a anima de Hillman. Para Jung, a anima é um contribuidor imensamente importante para a meta, mas ela não pode tornar-se a meta. Assim como o ego, a anima precisa, em última instância, servir ao que é maior que ela mesma. Se esta 'grandeza' centralizadora está faltando, estamos à mercê da anima, oscilando de um lado para outro, de um extremo a outro. Quando Hillman jogou fora o arquétipo da totalidade, ou a idéia de Si-Mesmo de Jung, cedo em sua carreira, ele pode não ter sabido o que estava fazendo. O Si-Mesmo torna possível a regulação dos opostos, o equilíbrio entre demandas internas e externas, e os mecanismos compensatórios da vida psíquica. O Si-Mesmo desautoriza o extremismo de qualquer tipo e, através do agenciamento da 'função transcendente', trabalha ativamente para solapar o extremismo antes que ele torne-se crônico e estabelecido. Hillman achou toda essa conversa de equilíbrio, integração e totalidade intelectualmente antiquada. Não apenas Hillman, mas toda a nossa era, é agora virtualmente 'alérgica' à idéia de totalidade e equilíbrio, lendo toda tentativa para a unidade como uma indesejável 'imposição' de ordem. Acredito que temos que nos reeducar fora deste complexo pós-moderno, e re-experimentar a contribuição libertadora e curativa da totalidade, ao experenciar de novo os poderosos símbolos da totalidade que estão agora quase banidos de nosso vocabulário pós-moderno. Hoje, ainda estamos reagindo contra as opressivas unidades antigas, ainda rebelando-nos contra as religiões e filosofias que se corromperam sob seu próprio peso político e poder social. Neste sentido, não somos pós-modernos de forma alguma, mas apenas quase-modernos (most-modern), excitados pela fragmentação, pluralidade, partículas e lacunas. Mas a psique ou alma não é controlada pelas leis da moda, e pode estar demandando uma nova experiência de unidade a qual nossa época é ainda incapaz de responder. (...) Eu acho que já é tempo de 'unidade' e 'equilíbrio' deixarem de receber tamanha carga negativa, e que ultrapassemos nossa fóbica reação à totalidade. (...) Ainda vivemos sob a sombra das 'más unidades' (Cristandade, Fascismo, Comunismo), e isso continua a bloquear nossa passagem para as novas unidades que devem querer emergir na sociedade e também na psique. O permanente valor do Si-Mesmo de Jung, aquele arquétipo 'guarda-chuva' que traz os elementos em guerra para o diálogo e o relacionamento, pode não estar em má circulação na sociedade intelectual, mas sim em sua eficácia na vida psíquica e pública. O fato é que realmente precisamos de conceitos muito amplos, ideais ou deidades para lidar com os opostos primários tais como dentro e fora, masculino e feminino, os quais ameaçam nos separar se nos alinhamos com um às expensas do outro. Com efeito, essas unidades realmente tornaram-se corruptas e devem ser postas de lado. Mas venerar a pluralidade (a deidade pós-moderna) como um fim em si mesma é uma perversidade que a psique não vai tolerar. Desde esta perspectiva, a carreira de Hillman provê uma amostra negativa para a necessidade de uma visão reconciliadora de coerência e unidade29.

O sentido dialético do ser é a unidade-na-diferença entre a univocidade e a equivocidade. O ser se diz num só e mesmo sentido para tudo aquilo em que se diz, mas o que ele diz de forma alguma é o mesmo. A univocidade implica uma só voz para todos os rumores, enquanto a equivocidade ecoa uma polifonia infinita, todas elas vibrações musicais da lira de Hermes.
Sem a multiplicidade de formas em que aparece o ser não seria o que é, oposição. E sem a substância que conecta logicamente as aparências do ser, elas se perderiam numa pluralidade de fragmentos abstraídos uns dos outros. Monismo e pluralismo são necessários para cada um ser o que é, pois ambos se afirmam por meio da negação do outro e não seriam o que são sem a mediação do outro.
A unidade lógica é causa de si no mesmo sentido em que virtualmente é causa de tudo. Não se trata de um ser que permanece abstraído nas alturas daquilo que emana dele, pois isso pressuporia a eminência do princípio criador e consequentemente um cosmos hierarquizado que vai se degradando à medida que os entes se distanciam da causa primeira. O Logos é um universal concreto que afirma sua universalidade congregado aquilo que imana de si. A causa é imanente ao efeito, porque os entes são imanentes ao ser que permanece implicado naquilo que explica, mesmo que não se confunda com o que dele imana, transcendendo constantemente os entes particulares ao afirmar novas oposições que impedem sua circunscrição a qualquer aparência específica.
É essa transimanência que os adeptos da alquimia sussurravam nos ouvidos uns dos outros. O grande segredo do conhecimento de deus é que o uno, o todo, o infinitamente grande em suas manifestações, deve ser apanhado através da doutrina alquímica sob a forma do infinitamente pequeno, como um peixe que condensa em si a imensidão fluida do oceano onde habita. A busca do lúmen naturae é a busca do fogo eterno divino que tem sua luz refletida nos pequenos olhos dos peixes, e o alquimista extrai o espírito divino da matéria como um pescador iça um peixe das profundezas oceânicas30.
Isso requer um profundo comprometimento com o espanto presente na pergunta que originou a metafísica: “porque há o ser e não o nada?” Schopenhauer considerava o homem um animal metafísico porque ele se espanta com sua própria existência. Para o homem aquilo que é dado, óbvio, a vida, o existir, é extra-ordinário, intenso, numinoso, e por isso ele levanta constantes questões sobre aquilo que lhe opõe, a morte, o nada, o não-ser. O ser humano adquire consciência da vida, do ser, daquilo que é, ao contrastá-la com o não-ser do nada, pois tornando-se um ser-para-a-morte ele enraíza-se conscientemente na própria vida.
Comprometer-se com questão metafísica é comprometer-se com o extra-ordinário que é mais ordinariamente presente, o ser. É um comprometimento com a primeira matéria alquímica, aquela que está diante dos olhos de todos, que a tocam, amam, mas não a conhecem, gloriosa e vil, preciosa e insignificante, encontrada em toda a parte, com tantos nomes quantos são as coisas do mundo e exatamente por isso desconhecida para o tolo. Para isso é preciso uma psicologia ontológica, onde o ser é a interioridade lógica virtualmente presente em tudo. Não se trata de um retorno puro e simples à antiga metafísica, e sim um retorno profundamente enraizado nos avanços e descobertas que geraram a situação concreta que atualmente vivemos. Não é mais possível ignorar a influência da subjetividade no conhecimento, acreditando ser possível construir uma teoria plenamente objetiva. A revolução copernicana da razão efetuada por Kant não pode ser ignorada e por isso mais do que nunca a dialética se faz necessária e importante na realização de uma unidade aberta às diferenças. O caminho para além da física é o caminho para dentro, para a interioridade lógica desse mundo, pois o outro mundo da alma está dentro desse, constituindo sua logicidade.
O Logos, a idéia-ser, é completamente literal sendo primária e irredutivelmente oposição e nada mais. Não há nada por traz disso, nenhuma metáfora raiz da qual a oposição deriva, pois imagens como o Mercúrio, irmãos gêmeos em conflito, hieros gamos, a luta do herói com o dragão, o espírito santo, são particularizações dessa arquê. Não estamos mais aqui na superfície do pensamento sensorial onde a existência é um dado primário e a relação um acidente secundário. Os entes em relação são particularizações da relação que só é universal em sua eterna diferenciação singularizante, porque é isso que afirma a unidade da oposição consigo mesma, a ex-pulsão para fora de si como um outro que a im-pulsiona para dentro de si-mesma. Essa unidade literal de sentido do ser consigo mesmo é também a diferenciação dele numa multiplicidade de imagens que o re-apresentam ao transportá-lo além (meta + pherein = transportar além, ou através de) de si para reencontrar-se ouroboricamente transformado consigo mesmo. A imagem que projeta o ser além, que o simboliza ( syn + ballein = projetar na direção do mesmo), é a re-flexão do si-mesmo universal na forma invertida do outro particular.
A oposição não se refere a nada positivamente determinado, não é a oposição específica entre masculino e feminino, psique e logos, consciente e inconsciente, sujeito e objeto, eros e thanatos, universal e singular, infinito e finito, espírito e matéria, etc. Todos elas são determinações da oposição per se. O único modo de falar dela é fazê-la funcionar, determinando-a. Oposição é a identidade-na-diferença que está potencialmente presente em tudo. Oposição é a real identidade do si-mesmo e por isso ele é um outro-em-si. O si-mesmo enquanto totalidade universal só é si-mesmo quando se atualiza em um outro particularizando-se. A oposição por ser a idéia mais abstrata, mais abrangente, o próprio ser universal, é o eterno fluir no seu outro, tornando-se também a mais concreta. Dialética é o deixar-se cair no abismo sem fundo dessa única idéia, desdobrando tudo aquilo que nela está implícito.
O arquétipo em-si é irrepresentável porque ele equivale ao conceito de puro ser. Se desdobrarmos a vida interna latente nesse conceito, ele inevitavelmente aparecerá numa forma personificada. O ser, a arquê de todo o movimento é inimaginável porque ele não é uma imagem, mas lógica dialética. Enquanto Logos, o ser aparece como imagem, mas não é puramente idêntico a ela. A diferença entre o Logos e a imagem é interna, um pertence ao outro sem, no entanto, serem idênticos. Nem Jung nem Hillman mas a unidade negativa de ambas as abordagens é a dialética praticada aqui. Hillman está certo ao enfatizar a importância da imagem na compreensão do arquétipo em-si, mas ao eliminar a estrutura que está por trás da imagem ele rejeita aquilo que torna possível seu próprio pensamento. O que está por trás ou por dentro da imagem e que a torna arquetípica é o Logos, que por ser oposição é nele mesmo o seu outro, imagem. O Logos é a sizígia anima-animus, um conceito que se personifica para ser o que é sem com isso abrir mão da sua essência conceitual. Por isso esse Logos não é redutível ao animus, pois é o animus enquanto parte da sizígia.

***

Tomar a oposição como uma dentre as muitas metáforas possíveis da alma é o melhor modo de evadir-se dela, pois abre um espaço para ela desde que permaneça comportada e não perturbe o funcionamento da teoria com nenhum questionamento intelectual que transgrida os limites da imaginação. A psicologia arquetípíca pode até achar que enfrenta o problema da contradição estacionando no ponto médio entre os opostos, mas o engajamento com a oposição exigiria que ela também a pensasse e não apenas brincasse com ela no playground da imaginação, colocando-a de lado para se divertir com outras imagens quando estivesse entediada. Relativizar a contradição como apenas uma dentre as muitas imagens possíveis é jogá-la numa multiplicidade de indiferenças. Enfrentá-la requer por as mãos na matéria prima e trabalhá-la não só como uma imagem, mas como aquilo que ela também é, um problema intelectual.
A psicologia arquetípica atua (acting out) o Hermes trapaceiro em sua teoria fingindo colocar a coniunctio de lado, mas recorrendo a ela toda vez que se encontra em apuros. Quando o seu jogo emperra por causa da contradição, ela retira da manga o coringa hermético, permitindo que o jogo flua sem pagar o preço exigido pela sua lógica subversiva. Ela o toma como apenas uma das muitas ferramentas possíveis do seu canivete imaginal, utilizado somente quando necessário para certas tarefas e sendo guardado logo em seguida para que a consciência não se corte logicamente com sua lâmina afiada. Trancado numa caixa com outras ferramentas indiferentes, Mercúrio é impedido de infectar a sintaxe da teoria. Apesar da psicologia arquetípica criticar a lógica analítico-formal, a relação que ela tem com suas imagens é tão utilitária quanto a que a análise-formal mantém com seus conceitos, pois, enquanto ferramentas para abrir coisas, as imagens míticas são extrínsecas ao material em que são aplicadas. Não há nenhuma espistrophé aqui, nenhum retorno de algo ao seu princípio arquetípico, mas formalismo abstrato no qual os mitos não são de modo algum amplificações (no sentido eletrofísico de intensificação de algo que já estava lá)31.
A psicologia arquetípica tomou o partido da imaginação mitopoética por ela ter sofrido um poderoso ataque da razão abstrata que a reprimiu ao ponto de identificá-la com o próprio inconsciente. Mas a separatio entre metafórico e literal é uma operação do animus em sua necessidade de distanciar-se da imaginação. Se a fantasia for deixada livre para se desenvolver ao seu bel prazer inevitavelmente conduzirá à literalização, pois ela apresenta seus conteúdos como entidades existentes. Faz parte da natureza da própria imaginação literalizar suas figuras e o espaço onde elas se movem. Quando estamos sonhando não importa quão absurda são as cenas e as figuras que nela aparecem, elas são reais e é a mente diurna com suas separações lógicas que as toma como produções fantásticas da imaginação. A imaginação também seduz a consciência a acreditar literalmente nas suas produções. Literalizar é uma atividade intrínseca à fantasia. Basta observarmos as culturas onde o animus ainda não efetuou seus cortes lógicos para constatarmos o quanto as imagens são literalmente reais. Não existe na linguagem dessas culturas uma categoria para expressar o significado literal de uma palavra, sendo difícil diferenciar a qual dos dois domínios as afirmações proferidas pertencem. É a lâmina do espírito monoteísta que separa a realidade em literal e metafórico e a psicologia arquetípica ao tomar o lado da metáfora contra o literal, não enxerga o espírito que fornece as categorias básicas que tornam possível a sua atuação, visto que a divisão entre literal e metafórico está inscrita nela. Logo mesmo que ataque o espírito monoteísta com acusações de cegueira literal é ela que é cega ao não enxergar-se como cria do animus monoteísta32.
O espírito rechaçado como externo é imanente à sua abordagem e como a psicologia arquetípica se nega a qualquer compromisso lógico consciente com a razão conceitual, ela retorna ocultamente no próprio modo de funcionamento da perspectiva metafórica. Se a psicologia arquetípica é acusada de reduzir tudo à imaginação ela se defende afirmando que é a imaginação que dá a qualquer coisa seu caráter de realidade. Por outro lado se ela é acusada de ter se tornado supersticiosa com suas afirmações de que os deuses governam nosso mundo e que mesmo as coisas inanimadas possuem alma, ela se defende dizendo que as imagens estão sendo tomadas literalmente33. A psicologia arquetípica constitui-se enquanto esse movimento autocontrário que circula de um lado para o outro. A divisão entre literal e metafórico está inscrita no seu DNA sendo intrínseca ao que ela é. Por mais que negue ela é uma cria do espírito monoteísta, abordando as imagens com uma reserva mental que lhe permite não tomá-las literalmente. Ela ataca as disciplinas do espírito de distanciamento e abstração, não enxergando que essa atitude é inerente ao seu próprio método, que lhe permite não ser vítima do movimento de literalização coagulante interno às imagens. É esse distanciamento que torna possível a compreensão do sintoma do paciente como uma metáfora. Para o paciente que sofre do sintoma e está imerso nele como num sonho, o sintoma é literalmente real, podendo até matá-lo, assim como o medo de ser vítima da vingança dos espíritos dos ancestrais mortos é algo tremendamente real para os primitivos.
É o animus apolíneo que permite a psicologia arquetípica abstrair-se da fantasia, compreendendo-a como fantasia e não como realidade literal, e também distanciar-se da realidade compreendendo-a como realidade de fantasia e não como literalidade. A psicologia arquetípica nasce como uma reação ao espírito monoteísta que governa a consciência ocidental, mas é através dele que ela consegue abstrair-se das imagens para ver através delas. Se a imaginação borra a fronteira entre realidade e fantasia, englobando-nos nas suas produções, seduzindo-nos a acreditar na literalidade da sua realidade, então imaginar e ver através se contradizem, pois quando estamos imersos em um sonho não vemos através das suas imagens, não lidamos com o monstro de dez braços que aparece nele como uma fantasia, e quando isso acontece pode-se dizer que a consciência diurna ainda está ativa, mantendo um certo distanciamento do sonho, percebendo a diferença entre ele e o mundo objetivo diurno.
A imagem de fantasia aporta na psicologia arquetípica com um aviso de “Perigo! Não me tome literalmente!” que contradiz sua dinâmica imanente de afirmar-se como literalmente real. É a luz diurna de Apolo que clareia o inframundo para poder ver através das suas sombras. É o trabalho da consciência diurna que impede que a imaginação encapsule a realidade literal na fantasia fazendo da fantasia uma realidade literal. Isso é possível porque ela mantém uma reserva mental diante da imagem, prendendo-a numa jaula que paralisa seu movimento antes que ela se estabilize como uma hipóstase metafísica ou uma verdade empírica. É a espada do animus que domestica a anima cortando suas garras e mantendo-a afastada da realidade literal. O nome desse animal domesticado é ficção, a prima-matéria da psicologia arquetípica34.
A retirada da substância divina da natureza, que dividiu a realidade em metaforicidade e literalidade, foi obra do monoteísmo do animus, e graças a ele a psicologia arquetípica pode ver através das imagens abordando-as como ficções. Imaginar e ver através são duas atividades excludentes que juntas compõe o movimento de psicologização. A primeira absorve a consciência ao objetivar suas produções como literalmente reais enquanto o segundo abstrai-se delas ganhando distância suficiente para transparecê-las. Mas a psicologia arquetípica parece não se dar conta de que ao defender a imaginação contra a literalidade cai em contradição implosiva desfazendo neuroticamente com uma mão o que faz com a outra. O que caracteriza a lógica neurótica não é o movimento contrário das duas mãos, mas a inconsciência de que as duas pertencem ao mesmo corpo, e a psicologia arquetípica se coloca como maneta com sua insensibilidade à mão literalista que ataca como um corpo estranho. Incapaz de perceber a inerência do literal ela se autodestrói logicamente, como um corpo cujo sistema imunológico ataca suas próprias células ao confundi-las com invasores estranhos.
Recusando o compromisso com a lógica conceitual ela não compreende a contradição por insuficiência da metáfora, que implicitamente afirma o oposto daquilo que explicita. “A menos que as coisas se coagulem, não há necessidade de penetração psicológica. A função metafórica da psique depende do literalista onipresente que há dentro de cada um de nós”35. Se não houvesse nenhum literal a ser negado não haveria nenhuma metáfora a ser afirmada, pois ela sofre de uma insuficiência lógica sem o seu negativo, e a psicologia arquetípica bóia alegremente na superfície das afirmações metafóricas não conseguindo ver através delas e, portanto, de si-mesma, pois iguala unilateralmente o seu fazer alma com a atividade metafórica desliteralizante.
O metafórico acusa o literal de fundamentalista controlador enquanto o literal se defende acusando o metafórico de obscuramente confuso. A metáfora defende seu principado afirmando que não existe nenhuma literalidade original, que as noções que temos de coisas objetivamente concretas são metáforas coaguladas que não conseguimos mais enxergar através e que por isso são tomadas como literalmente reais. O literal contesta o principado da metáfora afirmando-se como realidade primária da qual a metáfora secundariamente deriva, afinal só se pode esquecer que algo é metafórico se houver uma definição prévia do que é literal, pois afirmar que a realidade é uma forma coagulada de fantasia exige uma distinção prévia do que é realidade e do que é fantasia para que se possa compreender como uma solidifica a outra. O metafórico defende que mesmo a afirmação mais literal contém um potencial metafórico oculto em seu interior, um brilho sutil ofuscado pela clareza solar seca do literalismo, enquanto a literalidade objeta que a matéria prima original da metáfora continua presa nela, brilhando através das camadas de elaboração metafórica, contaminando-a completamente. A fonte da metáfora não pode ser descartada e, reciprocamente, o conteúdo da metáfora afeta de um modo crucial a fonte de que deriva, determinando o modo como lidamos com ela36. Mesmo a fantasia mais delirante contém sempre traços da realidade social concreta na qual se desenrola, assim como aquilo que chamamos de realidade social concreta é permeada pelas fantasias dos atores sociais que a constroem.
Ignorando que o literal é a interioridade da metáfora, a psicologia arquetípica inconscientiza-se do seu próprio inconsciente, da sua interioridade mais íntima, neuroticamente exteriorizando a si de si-mesma ao cuspir para fora a metade literal do seu fundamento. Ela se enxerga como uma disciplina da interioridade, mas não consegue ver através dos seus próprios pressupostos, continuamente assumindo posicionamentos cuja lógica é completamente extrínseca ao seu modo de ser, e atacando posições que em ultima instância fundamentam todo o seu movimento de fazer alma. Assumir unilateralmente o partido da metáfora, ou do literal, resulta inevitavelmente na insuficiência lógica porque nenhum faz sentido isolado do outro, referindo-se negativamente à ele para poder afirmar seu modo de ser. Quando essa insuficiência não é conscientizada, mas celebrada como ocorre na psicologia arquetípica, ela implode sua sintaxe lógica gerando todo tipo de absurdos e confusões. A consciência da correlação entre os opostos impede a permanência na reflexão exterior que concebe ambos como indiferentemente diferentes, interiorizando a consciência na profundidade da relação de cada um consigo mesmo, que é idêntica à relação de cada um com o outro, pois é por meio desse outro que cada um conquista sua identidade interna como idêntica a sua diferença interna, identidade-na-diferença. Exteriorizar-se no seu outro é o primeiro momento do movimento de interiorização de cada um em si-mesmo.

***

Um paciente procurou atendimento devido à falta de desejo sexual causada por uma cirurgia que sofreu no epidídio. Há cinco anos seu testículo esquerdo desenvolveu um caroço. Ele foi ao médico que diagnosticou uma epidimite, lhe prescreveu remédios e marcou uma cirurgia a ser realizada em dois meses. Alguns dias depois seu testículo começou a doer intensamente tendo ele que ir ao hospital antes do acertado. Lá o médico brincou que seu testículo não agüentou esperar. Foram feitos exames mais aprofundados no que foi constatado que era preciso retirá-lo. Após a cirurgia o médico lhe mostrou o testículo retirado, ele estava quase todo preto por dentro como se estivesse apodrecido.
Um ano depois enquanto tomava banho numa lagoa notou que o testículo direito estava começando a inchar, ficando enorme. Retornou ao médico que constatou novamente que o melhor seria a extração visto que a situação poderia piorar. Desde então seu desejo sexual foi lá para baixo. Não conseguia mais ter ereção com a esposa. Mas foi quando brochou com a amante que ele realmente começou a se preocupar. Procurou um médico para fazer um exame que medisse sua taxa de hormônio. Quando saiu o resultado o médico perguntou se ele conseguia ter pelo menos uma ereção mensal, e ele respondeu que dependendo do estímulo conseguia até duas, o difícil era mantê-las. O médico lhe congratulou pois com aquele nível hormonal era um milagre que ele conseguisse ter mais de uma ereção por ano. Foi passado um remédio para aumentar o seu nível hormonal. Ele tomou algumas doses mas parou ao ler nas contra indicações que o medicamento poderia causar câncer de próstata. Teve medo de piorar ainda mais a situação.
Para ele o que mais o irrita nisso tudo é a falta de compreensão da sua esposa descrita como uma pessoa muito exigente, controladora, que quer as coisas sempre do seu jeito. Se na hora que ela sente desejo sexual ele não corresponde, ela se irrita enchendo-o de críticas, não aceitando de modo algum suas explicações. Ele conta que seu casamento já começou errado, ele estava desempregado e havia perdido sua mãe recentemente. Sua mãe era uma pessoa de pulso firme muito protetora, sempre disposta a brigar pelos filhos, mas também muito justa, sempre pronta para castigá-los caso eles estivessem errados. Ele era o caçula do 2º casamento de seu pai, descrito por ele como um homem trabalhador mas um tanto ausente e rude, principalmente quando bebia. Na época do seu casamento ele estava sentindo-se muito desamparado, com muitas dúvidas se era a hora certa de casar mas não teve coragem de interferir na data pois a cerimônia estava sendo organizada há algum tempo. Sua esposa aproveitou-se de sua vulnerabilidade desde o início para passar por cima de toda e qualquer decisão que ele tomasse.
Ela cobrava e reclamava em excesso principalmente do seu salário que jamais era suficiente para pagar as despesas da família, apesar de ele entregar integralmente tudo que ganhava nas mãos dela. Calar-se e engolir a raiva era a estratégia usada por ele para encerrar as discussões. Ela se alterava, levantava a voz, e ele, por detestar brigar, não conseguia lidar com o seu gênio forte. Quando perguntei se ele a amava, respondeu que não. Disse que sente muita mágoa de uma situação ocorrida há alguns anos. Um parente dela disse que ele estava tendo um caso com uma companheira de trabalho com a qual nada tinha além de amizade. Sua esposa fez um escândalo durante um almoço de família na tentativa de desmascará-lo, deixando-o com a cara no chão de constrangimento. Ele nunca perdoou sua atitude de não perguntá-lo se aquilo era verdade, de não ouvir antes o que ele tinha a dizer, de em vez disso expô-lo ao ridículo na frente de várias pessoas, e isso matou o afeto e o carinho que ele ainda tinha por ela. Quando perguntei por que ele ainda estava com ela, ele respondeu que era muito apegado aos filhos, tinha medo que eles não entendessem e sofressem com a separação.
No acontecimento literal da retirada dos testículos brilha a luz metafórica da imagem arquetípica do feminino devorador, cujo útero liquefazia os limites entre o corpo e mente, entre o aspecto azul e o vermelho do espectro anímico, corporificando literalmente a castração que vinha sofrendo na sua relação com a esposa. O devoramento pela imagem da Magna Mater literalizava-se na matéria do seu próprio corpo. A água do lago onde percebeu o inchaço dos seus testículos simbolicamente dissolvia a firmeza dos seus posicionamentos. Assim como a água assume passivamente a forma dos recipientes onde está contida, ele não solidificava seus limites, deixando-se levar pelas situações nas quais se encontrava.
Ele reclamava que precisava fazer uma dieta urgente devido à intensa elevação da sua pressão. Por traz da calma passividade que engolia tudo calado concentrava-se o peso de uma intensidade emocional prestes a explodir, inchando seus testículos até que de tão inflamados eles precisaram ser retirados. Mas lhe era mais fácil cindir-se da sua agressividade deixando-a cargo da sua esposa, alçada ao posto de vilã da história, enquanto ele inocentemente sofria as vicissitudes do destino, reproduzindo as cenas da sua infância onde sua mãe defendia os filhos como uma leoa brigando com qualquer um que os destratasse, enquanto que ele parecia ausentificar-se da sua própria vida, como se não estivesse acontecendo com ele, assim como o seu pai não dava notícia do que acontecia em casa e quando dava reagia com brutalidade.
A agressividade dele era passiva: amantes secretas, falta de desejo que irritava a esposa, distanciamento dela para trabalhar em outra cidade. Ele fugia dos seus problemas e dele mesmo, mas isso só o mergulhava ainda mais nas questões que o afligiam e que permaneciam não resolvidas à espera que ele assumisse uma posição ativa frente a elas.

andre.mercurio@hotmail.com

NOTAS

1.Trecho do livro PSICOLOGIA DIALÉTICA: UMA CRÍTICA INTERNA À PSICOLOGIA JUNGUIANA, escrito pelo autor e disponível em http://clubedeautores.com.br/book/3630--Psicologia_Dialetica
2.CORBIN.H, Mundus Imaginalis: lo imaginário & lo imaginal. Disponível em http://homepage.mac.com/eeskenazi/Mundus.html.
3.HILLMAN.J, Psicologia Arquetípica, pp.24, 25-26. São Paulo: Cultrix, 1995.
4.CORBIN.H, ibid.
5.CORBIN.H, ibid.
6.CORBIN.H, ibid.
7.HILLMAN.J, Encarando os Deuses. São Paulo: Pensamento, 1997.
8.MILLER.D, Three Faces of God. New Orleans: Spring Journal Books, 2004.
9.MILLER.D, The Word/Image Problem. disponível em http://www.rubedo.psc.br/artingle/wordima.htm
10.MILLER.D, Three Faces of God, p.95.
11.SNELL.B, apud AVENS.R, Imaginação é Realidade, p.32. Petrópolis: Editora Vozes,1993.
12.AVENS.R, ibid, p.32.
13.TACEY.D, Torções e Mudanças com James Hillman, disponível em http://www.rubedo.psc.br/Artigos/girando.html.
14.HILLMAN.J, Psicologia Arquetípica, p.47.
15.HILLMAN.J, Entre Vistas, p.34. São Paulo: Summus, 1989.
16.SAMUELS.A, A Psique Plural. Rio de Janeiro: Imago, 1992.
17.SAMUELS.A, ibid.
18.SAMUELS.A, ibid, p.204.
19.SAMUELS.A, ibid, pp.207-208.
20.SAMUELS.A, ibid, pp.208-209
21.SAMUELS.A, ibid, pp.212-213.
22.GIEGERICH.W, Souls Logical Life. Frankfurt: Peter Lang, 2001.
23. HILLMAN.J, O Mito da Análise, pp.69,70. Rio de Janeiro: Paz e Terra,1984.
24.DESMOND.W, A Filosofia e seus Outros: Modos do Ser e do Pensar. São Paulo: Edições Loyola, 2000.
25.JUNG.CG, Mysterium Coniunctionis, Obras Completas Vol XIV/2, pp.214,215. Petrópolis: Editora Vozes, 1990.
26.GIEGERICH.W, ibid.
27.HILLMAN.J, The Dream and the Underworld. New York: Harper Perenial, 1979.
28.HILLMAN.J, Re-Imaginar laPsicología, pp.283,284. Madrid: Siruela, 1999.
29.TACEY.D, ibid.
30.JUNG.CG, AION – Estudos Sobre o Simbolismo do Si-mesmo, Obras Completas Vol IX/2 . Petrópolis: Editora Vozes, 1982.
31.GIEGERICH.W, ibid.
32.GIEGERICH.W, ibid.
33.GIEGERICH.W, ibid.
34.GIEGERICH.W, ibid.
35.HILLMAN.J, ibid, p.306.
36.SAMUELS.A, ibid.

Um comentário:

  1. Maravilha André! Qua achado um texto seu disponivel! Ainda mais sobre qual assunto. Vou ler e divulgar. Gosto das ideias que vc escreve.

    ResponderExcluir